Finita como flores

17 de jul. de 2018

O BAIRRO DA GLÓRIA

A cidade tem muitos cantos. Por isso posso olhar seriamente o mar de
longe e sofrer porque a vida não é longa e temos que carregá-la conosco como uma mala de casco de tartaruga.

Por isso posso experimentá-la, tendo-a esquecido. E apontar o Museu de Arte Contemporânea, tão pequenino do outro lado, como quem mostrava os micos da Lagoa pras visitas. Mudar de endereço é rever faces que tivemos, reconhecer, estranhar, às vezes sequer identificar. É ver surgir num retrato de infância o nosso olhar eterno, uma essência que já nasceu conosco e que permaneceu, com suas belezas e imperfeições, apesar das cores de cabelos que tivemos, dos corpos que habitamos e que se transformam diariamente, apesar dos penteados estranhos, dos amigos perdidos, dos amores que morreram para sempre, dos que não morrerão jamais, dos mortos, dos feridos, dos convalescidos e ver surgir o nosso olhar eterno como num espelho: essa sempre serei eu.

Em Búzios comprei uma biruta que pendurei no alto da casa do Alto Glória, na esperança de que um helicóptero extravagante jogue um puçá e mude minha vida.
Somos duas em casa agora.
Vontade de voltar pra casa porque há um canto que me espera impregnado de referências e enfeites. É pequeno. Lá, meus pertences não cabem, livro-me do desnecessário, amplio seu conceito, obrigo os objetos escolhidos a fazerem contorcionismo e me conformo: morando sozinha no Rio definitivamente não necessito de três cobertores.
Vi papagaios rondando a minha nova casa no alto e ouvi o assobio dos saguis sem vê-los.

Bem-te-vis gagos comentavam entre si seus nomes. Bem no miolo do Rio de Janeiro. Talvez em breve eu possa desempacotar-me. Morte simbólica, sumiram de vista meus objetos, meus caminhos de ida e volta. Desgovernei-me na primavera. Mas a cidade é     mágica por isso, porque não perdeu a inocência selvagem dos bichos. E andando meia hora ou menos estou no Centro. Cinelândia é nossa praça europeia e nosso depósito de meninos. Cine Odeon marcando os bons tempos. Por baixo da terra os trens nos
levam pra Glória. Uma estação nos separa.

O Aterro do Flamengo era meu cineminha diário pra ir pro trabalho que não me cansava de admirar do ônibus. Cinquenta minutos da porta de casa à porta do trabalho se transformaram em quinze. Agora virei mulher subterrânea sobre trilhos,que se vê refletida na janela escura. Quando o locutor em off avisa: Próxima estação, Glória! tenho a confiante tranquilidade que passar do ponto distraída é coisa do passado. Ouço meu nome e entendo: minha estação chegou.
Quando fui morar no bairro da Glória, sentia-me homenageada porque a papelaria, o caminhão da transportadora, a
cooperativa de táxi, a pensão, o hotel, o teatro, o outeiro, tudo se chama, como eu, Glória. Até o Pet Shop é Bicharada da Glória. Tem rua com placa: Acesso à rua da Glória. Eu era a própria Joana Angélica, viva, passeando pelo calçadão. Um mês depois, estou saturada. Lá, eu me sinto como se perguntassem meu nome, e eu dissesse:
- Ipanema. Meu nome é Ipanema.

Leila, estou satisfeita com minha casa-malhação, no alto do mundo. Acho que finalmente vou ter bunda. Subir escadas dá bunda? Subo na boa, só não posso olhar pra cima que me dá vertigens e acho que não vou conseguir. Mas já coloquei uma cadeira em frente à sua casa, para descanso entre os primeiros cem degraus e os próximos cem.
Assim teremos nossa prosa diária garantida.
 Um amigo enciclopédico me disse que duzentos degraus equivalem a doze andares. Sem contar que estamos no alto de uma ladeira. É por isso que quando deito na minha cama, abro as janelas, e fico admirando a vista, o que vejo são gaviões, urubus
e aviões sob o fundo azul do céu. É muito céu. É céu pra cacete!
Se existir Deus, vou acabar dando de cara com ele. Algum recado?

Subo a minha ladeira caraminhola, os degraus íngremes que me afastam das picuinhas, dos rastros, das rasteiras, e suando chego no alto do mundo, onde aviões passam por dentro da minha cabeça, micos entram na minha cozinha pela porta, papagaios gritam em bandos uníssonos em polvorosa, bananeiras gemem noite e dia em lenta agonia, a cadela negra decola, sobe e desce a escada repetidas vezes como um elevador louco disparado, sem cansar-se, pêndulos, marés, ponteiros, até o tempo voar pra trás, paz na minha cachola, novela, livro ou foto em preto e branco. Alternativa, ensolarada, quieta. Ouço ao longe os disparos e os sustos das festas regadas a música antiga e longínquo falatório.
Não jogo as tranças.
 A pé, escrevendo em blogs que ninguém lê, sem talento para relacionamentos, sozinha, trabalhando onde trabalho para sempre e nos fins de semana andando no calçadão até o cu fazer bico. E aí? Depois dos quarenta não tem mais história? Não quero a entorpecência dos drinques e das trepadas fáceis, os mesmos papos inúteis reclamando de homem, adivinhando pensamento de homem e antecipando a menopausa. Quero a alegria ou o silêncio. Livros, e paciência para suportar o desfile de dias gêmeos e enfileirados e chatos como soldadinhos na parada. Que inferno. Ouço fogos de artifício. O lugar onde moro é um subúrbio alegre, as ruas são feias, as fachadas não vêem pintura há anos, a calçada é emburacada e desigual, repleta de cadeirinhas com bêbados em cima e falsa alegria, mentes alteradas.
Orelhão não funciona, lixo acumulado, tudo é ladeira. Vivo suando, bufando e carregando sacolas com comida. A grana é curta. Se tomo um chope, fico culpada. Se pego um táxi, fico culpada. Quero um volante, um guidón, uma manivela para reverter isso! Quero a depressão de volta. Penso
em abolir meu remedinho. Quero ficar inconformada, insone, deprimida, chorando à toa, quero rebelar-me.

Desde menina tinha horror a isso: a maldição dos alegrinhos. Quero parecer desgostosa. Detesto os velhos desleixados e barrigudos que me paqueram. Detesto os homens jovens que me ignoram. Quero usar burca, dormir pelada, cortar pelanca com a faca, esfaquear-me.

A MATURIDADE É CHATA COMO UM CONDOMÍNIO FECHADO


A maturidade é chata como um condomínio fechado. Segura, como uma excursão de senhoras. Não se sofre mais por amor, mas quando as contas atrasam. É a insônia quem nos surpreende clandestina no meio da noite, amante fria, seca e secreta, indesejável intrusa, ladra de sonhos, vigília inoportuna que oferece o tenso e silencioso espetáculo das ruas desertas, 
da lua sem dono boiando no céu negro, e o vazio de uma cidade aparentemente sem vida e com medo.

MATURIDADE É ADOLESCÊNCIA AO CONTRÁRIO


Maturidade é adolescência ao contrário. Na adolescência, hormônios saltam pelas narinas e confundem nossas cabeças, a gente tem um mundo à nossa frente, não sabe se quer ser hippie ou ministra da cultura, é linda e se acha feia, tem medo das coisas no futuro não darem certo . Na maturidade a gente já fez o que pôde fazer, o resto será adorno. A gente tem certeza absoluta do que jamais será, nem hippie nem ministra da cultura. Com muita dificuldade, esquecemos completamente tudo que não deu certo. Temos o que não se tem quando se é muito jovem: amigos há vinte, trinta anos. Temos um mundo à nossa frente, o nosso, aquele que a gente selecionou, salvou e fez back up.

LABIRINTO DA CRIATIVIDADE


Queria o que não pude. Mudei de ideia mil vezes.
Vivi perdida no labirinto da criatividade. Medo do amanhã, do ridículo, das novas e inevitáveis perdas. Não há mais pai nem mãe para morrer. Profissão para escolher. Amor imprevisto para nos surpreender, ingênuos, confiantes, desavisados, porque a qualquer momento o coração poderia disparar e acontecer. Não há mais anseios, só ansiedades. 
Búzios me traiu porque cresceu. E exagera, traz lembranças demais. Maravilhosas e tristes, foi tempo vivido forte, vivido às pressas, o mundo ia acabar na guerra fria e eu não podia perder um segundo. Lembro e me invejo jovem quando minutos acumulavam lembranças e hoje a vida bate lenta e curta como um trailer de um filme em show-motion. 
Perdas demais. Pensava que os amigos morriam quando a gente ficava velhinha, mas pensava tudo errado, em cada canto uma história, uma morte, um enlouquecimento, o nascimento de um burguês. Não fiz amigos novos lá. Aqueles que mantenho, carrego numa bandeja de prata. Em Búzios não me desligo, carrego os quilos de sonhos perdidos, arrasto saudades enferrujadas, fico pesada, é um passado e tanto a cada passada.

A CHAVE DO CATIVEIRO


Vou despertar, estejam seguros. Vou fugir desta prisão financeira, arrimo de família, tripla jornada. Entrei no jogo do empréstimo porque era balsa e eu me afogava. Fiz um pacote pesado cheio de anos de vida, a minha, e agora troco por dinheiro. Sem ganância, vou botar ordem no bambolê dos planetas. Organizar as órbitas descontroladas e retomar meu signo. Vou telefonar pros amigos que tenho e que ainda estão vivos, mágicos, por dentro, por fora e do avesso. Vou garimpar, recolher agulhas do palheiro. E vou dar uma big festa e convidar o mundo inteiro. Assim que localizar, meticulosa procura, a chave do cativeiro.



A EXPOSIÇÃO IMPOSSÍVEL

 Sonho que vou viajar pra fora.
 Chego em outro país. Abro um envelope com uma carta de minha mãe.
 Está tudo no papel: a língua que se fala, o mapa, a capital, o nome da moeda, o fuso horário, algum dinheiro.
 Informações básicas para que eu não me perca, não me desoriente, e me comunique no estrangeiro.
 Sonho que sei: no final da volta ao mundo nada do que eu experimentar será mais belo que o mar de Ipanema.
 Trata-se de um sonho autoexplicativo. Como na adolescência, em que a gente se pergunta quem somos, nem menina, nem jovem, nem velha, mulheres reinventadas, estanhas, estrangeiras, evas recriadas. 
Assim emigro para uma nova vida adulta em que tenho que me valer de novos símbolos
É minha mãe quem me dá o manual, a palavra, a moeda, os instrumentos para que eu me constele. 
Mas levo Ipanema para sempre Ipanema como um epicentro.
 Um norte que não se desloca.
 Serei a mesma falando outra linguagem, usando outra moeda de troca, 

outros valores, outro calendário não mais marcados pela menstruação, 

perco meu sangue pontual e crio outras olimpíadas.

MARINO, SEJA BEM-VINDO AO PLANETA TERRA

Marino, seja bem-vindo ao Planeta Terra. A vida é   meio atrapalhada mas a gente curte algumas coisas que fazem com que ela valha a pena.
Uma é a arte, a música. Sobre isso, seu pai e seu irmão podem te dar vários toques. Outra coisa muito boa é o bom humor, a alegria e a arte de fazer e achar graça onde a maioria das pessoas (a maioria é chata, infelizmente) não consegue achar. Sua mãe é PHD em risos, sorrisos e gargalhadas. Acho que você deu muita sorte porque a gente não escolhe onde vai nascer. Ofereço-me para ser sua tia. Se você aceitar, está autorizado a me chamar de tia, ou de Góia, que gosto muito, o Julian assim me rebatizou. Não sabia falar Glória, me chamava de Bóia. Maíra era Baía. Como é bilíngue, misturava, dizia que o piano quebroken, que as coisas estavam in dentro, chamava luva de gluvas e um monte de besteiras que divertiam a gente. Adulto se diverte ouvindo criança falar errado, você vai perceber. Meu nome, de baía passou pra Góia e eu gostei.

Ofereço-me também para tomar conta de você. Tomei conta do Julian inúmeras vezes, tenho carta de recomendação da Kris. Deixo criança comer açúcar puro, pão com arroz, ketchup de colher, biscoito na hora do almoço, sorvete na hora do jantar e outras maluquices que você inventar.

Não leve a vida muito a sério mas tente manter os pés no chão. Dizem que a vida é curta, mas não acredite. Ela é longa pra caramba e está cada dia aumentando ainda mais. A expectativa de vida vai caminhando para cento e vinte anos. Vá com calma, tem muita coisa aí pela frente. Não vá ficar chorando só porque a chupeta caiu. Torço pra que você seja um menino bacana como teu pai e tua mãe, que seja feliz, juntando-se a nós, sua família alternativa: Maíra, Julian, Kris, Jorge, Bruno, Teca e outros amigos de seus pais.Tem a família de sangue, a que a gente nasce dela, e tem a família que a gente constrói ao longo da vida. Assim que você for liberado pra pegar sol, venha tomar um banho de mangueira na laje, é muito maneiro. A gente vê Niterói, o Museu de Arte Contemporânea, navios, aviões, papagaios, bem-te-vis, cachorros, urubus, minhocas e saguis. Bem, por enquanto você ainda não sabe o que é nada disso, mas com o tempo vai aprendendo.

Posso te dar uma força pra você não confundir minhoca com bem-te-vi, etc. É facílimo, não fique assustado. Ninguém confunde, não há de ser você que vai confundir. É só ter paciência. Na vida a gente nunca pára de aprender coisas. Quando a gente pensa que sabe tudo, aí é que danou. As verdades mudam de roupa, e temos que estar sempre correndo atrás.
Bem, cara, é isso aí, espero que você curta tua tia aqui. O Planeta Terra é bacana. Apesar  de tudo, vale a pena viver.
Bjks
Góia.

10 de abr. de 2014

Questão de tempo







O romance chama-se "Questão de tempo, a capa é de Sheila Emoingt, e tem o seguinte prefácio:

Leitora fiel de Gabriel García Marquez, Isabel Allende, e Mario Vargas Lhosa, sempre senti falta da vida sexual de seus personagens, o que me enche de curiosidade. Como era, de fato, deitar-se com um Buendía? Isabel Allende é boa de cama? A tia Júlia, de Vargas Lhosa, como transava? Se não estou à altura destes escritores, o leitor conhecerá, no meu livro, a vida sexual das várias gerações dos meus personagens.

Eu sempre quis escrever um livro como este, com histórias misturadas da minha família, da família dos outros, da minha imaginação, e de notícias de jornal que me impressionaram, como a da paratleta campeã Jessica Long, ou Tatiana Olegovna Kirillova, russa adotada por um casal americano, que inspirou a personagem que levou meu nome: Maria da Glória.

Nasci numa família de mineiros que sabem contar histórias. Minha mãe, suas irmãs e primos, todos bons contadores, e muito divertidos. Tenho Menezes tanto pelo lado de pai, quanto pelo lado de mãe. E sou prima do Maurício Menezes, do Plantão de Notícias. Jornalista e contador de casos, com muito humor, claro, ou não poderia ser meu parente.

Tio Dirceu, quando visito, levo gravador para não perder uma frase. Estive com ele em Diamantina, de onde veio minha família paterna, e meu tio me contou muitas histórias de nossos “antecipados”, como disse uma vez a Kris, minha amiga americana. Filmei meu tio e as casas onde viveram, o colégio onde estudou, tudo que pude. Diamantina é uma cidade tombada e, ao contrário do que o nome parece indicar, lá nada se tomba, todas as casas estão de pé, mesmo que seja só na fachada, como os Correios e Telégrafos, onde minha avó e suas irmãs trabalharam, e hoje, por dentro, é um restaurante. O passado me interessa.

Mesmo na idade em que as crianças e adolescentes preferem a companhia de seus pares, eu adorava ouvir minha mãe conversando com suas irmãs e primas, Shirley, Solange e Carminha. Até as coisas tristes eram transformadas em riso. E não faltaram coisas tristes, nem risos na minha infância.

Quase todos os meus primos de qualquer grau são engraçados, e bons contadoras de histórias, em especial Mônica, Alexandre e Tânia Horta. Talvez por isso, durante toda minha vida, eu tenha me apegado a amigos que sabem contar casos, e tive sorte: Christina Jorge, Regina Casé, Cecília Ribeiro, Mônica Peixoto, Elisa Lucinda, Regina Righi, Regina Coeli e Mariana, Célia Paulicelli, Nora Bernardes, Maria Paula Gomes, Rita Abreu, João Moita, Leila Alvarenga Barbosa,Pablo Manuel Menezes, que deve ser meu primo. E Carlos Mello, Sheila Emoingt, ih, a lista é enorme, grudo em bons contadores. De histórias verdadeiras, inventadas, esquecidas, aumentadas ou repassadas, isso é o que menos me importa.

Depois que comecei a escrever este livro, onde pude despejar meu desamparo e meu sofrido deslumbramento com o fato da morte levar todo mundo enquanto a vida traz outras gentes- é tudo uma questão de tempo – alguns personagens criaram vida e começaram a agir e a falar por si. Não relutei, claro, deixei-me levar por eles. A recorrência de um defeito, de uma qualidade ou característica dentro de uma família também sempre me espantou. Conheço um rapaz que nunca viu o pai, mas fala, gesticula, ri e faz piadas meio fora de hora exatamente igual ao pai que nunca viu. Observar gerações indo e vindo só faz aumentar meu espanto.

Agradeço a todos aqueles que me contaram casos, principalmente os de sexo e família, e dedico este livro aos meus amigos, de cujas memórias roubei pedacinhos de história para ajudar a compor este livro, e com quem hoje compartilho, boquiaberta, a iminência dos meus sessenta anos, os infortúnios e as graças de nossa breve existência. Espero que gostem.
(E espero que comprem...rs)

23 de fev. de 2014

FOTOS RECÉM-NASCIDAS



FOTOS RECÉM-NASCIDAS

Meraluz, tirei da incubadeira fotos recém-nascidas, ou há muito congeladas e paridas, que deixei numa cestinha na tua porta com um termo de adoção. Mate as feiosas como algumas tribos fazem com os bebês doentes. Delete-as rápido, antes que te apegues e percas a imparcialidade necessária para selecioná-las para o nosso site. Minhas filhas biológicas, entrego-as a ti, para que as insira na cultura. Seja rigorosa com elas. Eu, de tanto olhá-las, me envolvo, perco o critério. São diferentes das outras, as estátuas fotografadas por mim. Reconheço seus mínimos detalhes e a instabilidade de seus ângulos. Doem em mim suas partes quebradas, sujas, pintadas com cocô de pombo. Revejo-as nos meus trajetos diários, condoída com o abandono em que se encontram, e só fico tranquila porque sei que as encontrarei sempre, embora mortas, ali. Leve-as com cuidado, como tens feito, para o mundo virtual, onde ganham vida, recriadas por ti.

Meraluz, por que será que as estátuas têm pombos na cabeça? Como são esquartejados os bustos! A homenagem perde sua pompa e ridiculariza momentos imortalizáveis da História. Quando cresce o mato, chafarizes secos. Se jorram água abrigam bandos de mendigos, alcoólatras e gente que mora na rua e ali se banha, se ensaboa e lava roupa, como quem se sente em casa. Gosto de visitar as estátuas que fotografo, para ver como estão. Engana-se quem pensa que estão sempre iguaizinhas. Noite ou dia, sol ou chuva, desenhos de pinceladas de merda e um detalhe fundamental, que as torna sublimes, gozadas ou humanas: onde pousará o pombo?

O pombo humaniza a estátua. A estátua petrifica o pombo. Impossível separá-los. O pombo ridiculariza a estátua. A estátua dignifica o pombo.

Meraluz, quando chove, as estátuas ficam limpas: a nua da Candelária, a Imaculada, os dois homens a cavalo, o padre catequizando a menina, o tenente ferido. 
Durante meses, fiquei obcecada pelo Monumento da Cinelândia. Emocionam-me suas cenas representando a dramaticidade das relações humanas. Gastei dinheiro, rolos e rolos de filme, irritei-me. Uma pessoa me sacaneou quando cheguei feliz com um envelope cheio de fotos fresquinhas, dizendo: E agora? São fotos de homens lindões, ou DE NOVO aquelas estátuas cheias de cocô?


O CARIOCA


O carioca tem uma qualidade, que de tão grande virou defeito. Não nega informação na rua.
 Faça o teste. 
Pergunte a um carioca onde fica a Rua Tal. 
Se ele souber, repare seu olhar de satisfação. 
Porém... se ele não souber a localização da Rua Tal, observe sua expressão de descontentamento. 
O carioca vai olhar arregalado em volta, fazer um esforço sobre-humano, cavucando a memória, aflito. 
E, se de todo não puder ajudar, vai dizer qualquer coisa, é capaz até de inventar que é pra lá. 
E não será por maldade. 
Simplesmente o carioca, quando abordado por alguém perguntando onde fica a tal lugar, não consegue responder simplesmente:
 - Desculpe, eu não sei.
A Antropologia explica mais que Freud
Esse comportamento atávico teve sua origem nos primeiros contatos entre tribos indígenas seminômades e estrangeiros perdidos na selva. 
Os índios eram tão alegres e geograficamente tão situados, 
e os estrangeiros tão desorientados e medrosos, 
que nada dOía mais na alma ingênua de um silvícola do que encontrar aqueles branquelos peludos e magrelos suando e desidratando em suas botas, a poucas passadas de um riacho doce embutido na mata.
Naquela época nem precisava perguntar nem gesticular: água, água, água... Era só olhar pra cara suada e faminta do gringo perdido e assustado e apontar? 
Não. Os índios faziam questão de levá-lo até lá.