Finita como flores

18 de jul. de 2010

Geribá

GERIBÁ
Voltei para a minha terra. Vim com poucos pertences, a invisível bagagem. Criei um filho enquanto estive fora, voltei e não reencontrei todos os amigos. Voltei sem pai nem mãe, plantei os pés no chão durante a ausência necessária. A vida anda em círculos. Terei que deixar para trás tudo que não voa.

O pescador chama-se Heráclito. Sabe que ganhou o nome de um filósofo que dizia que o mar nunca é igual. Heráclito me convenceu, depois de longa insistência, a remar até a boia amarela e lá esperar a tartaruga surgir. Remar, remei. Esperar, não esperei. Dei meia volta e remando voltei. Sou uma mulher vivida, já vi tanta coisa, inclusive tartaruga, nadando e tudo. Já tomei até sopa dela, antes da natureza perigar. Heráclito quer me falar das mágicas da água de lá. Mas lá sou antiga como a tartaruga, sobrevivente, espécie quase extinta. Preciso ser preservada, agora você me entende? Não posso cair de amores e me desmantelar. Sou testemunha viva, ocular. Acreditei no amor livre, na casa de campo, nos meus livros, meus filhos, meus filmes, meus vícios e nada mais. Amor e paz. Tenho tatuagem no braço, vontade de amar, sou reincidente. Ainda hoje me emociono com estrela cadente, sol vermelho, fruta no pé. E não vou me modificar. Quem não arriscou, que arriscasse. Quem não idealizou, que o fizesse. Sonho e lembrança é tudo a mesma coisa. Não é tarde se as tartarugas estão voltando. Ainda posso esperar.

DOU VALOR AO MEU TRAVESSEIRO PORQUE NÃO SOU CEGA
Feliz agora sou. Férias da vida. E depois voltar à rotina básica que me espera. Gosto. Porque antes não me esperavam e não havia férias. Há oito anos ganhei terra firme, um milagre quarentão tipo brinde. Nunca me digam: a gente não dá valor. Eu dou valor ao meu travesseiro porque não sou cega e acabei de ver dezenas de pessoas dormindo embaixo da marquise na avenida Presidente Vargas.

CONFESSO QUE NÃO VI
Sete malas de dinheiro, dólares na cueca, grampos, olho roxo, tudo dinheiro que sai do nosso bolso sem a gente ver. Nos impostos embutidos, nos descontos de salário, na CPMF safada. Sete malas de dinheiro, dólares na cueca são a viagem que não fizemos, o curso que interrompemos, o doente que morreu na fila, o projeto que morreu na praia, a loja que fechou, a bolsa de estudos que não saiu, o bebê que morreu, o celular que sumiu, o dente que falta na boca, o espaço que falta na casa, o doce que falta na geladeira e os filhos que não pude ter.



HÁ HORAS QUE SOBRAM NUM DIA QUE JÁ TERMINOU
Ah, que às vezes eu queria ser como vovó e ir logo envelhecendo. Cabelos azuis, salto alto, bandolim, vovó Adila envelheceu assim. Eu não. Acordo e levanto peso. Ando a pé e murcho a barriga. Como menos do que gostaria. Faço sacrifícios porque não podemos parar hoje em dia, temos que ser eternamente jovens em plena euforia.
Não tenho mais insônias porque agora durmo tarde. O resultado são horas sobrando na escuridão de um dia que já terminou. E vejo tevê, mau sinal. Desligo e escrevo. Sem reler. O dia morreu. Trata-se de um velório. Logo enterro na memória, e já amanhece outro. Ficarão lembranças salpicadas, recortes aleatórios. Somos mistura de sonhos sonhados com tudo que não fizemos, na argamassa da vida. As recordações me assaltam, os desencontros, os arrependimentos. Saudades do que não foi possível, do que não estava ao meu alcance, do que não me deu chance, do que não mereci, do que não batalhei bastante, do que me escapou entre os dedos, do que tive medo, daquele futuro que eu jurava que era meu, pois se esteve bem na minha frente e eu perdi de vista, futuros fugiram sem deixar pistas. As saudades me assaltam, de quem foi embora porque morreu, de quem larguei porque doeu, de quem quis tudo, menos eu. Dos livros que não publiquei, do romance que não batalhei, da criança que cresceu, de quem me quis mas não deu. Dos planos que não deram certo, do que não veio e passou perto, raspando, quase acerto. A vida passou e eu não vi. Continua passando e eu não morri. Vida, quero te ver. Olha eu aqui.

ZÁS, O TEMPO ME ATROPELA
Vapt vupt passou um ano. Zás o tempo me atropela.
Vivemos no mundo travado dos congelamentos, das filas, dos engarrafamentos, do telemarketing, das secretárias eletrônicas repetitivas e monocórdias, feito disco arranhado. A velocidade moderna é uma lesma a bordo de um avião supersônico e falho. Tudo demora, só o tempo corre. Falamos com máquinas, moramos entre grades, somos espiados por câmeras. Se for amor, disque dois. Digitalizamo-nos. Quero um toque.

SILÊNCIOS DE DOMINGO
A televisão, muito perto da cama, sem volume, funciona como uma grande luminária caleidoscópica na escuridão do quarto. Outro dia, acompanhar uma conversa de bar não conseguia, fiquei com os ouvidos simpáticos. Há muito mais gente querendo falar do que ouvir. Calada, os amigos se abriram, sem as minhas impetuosas interferências. Faça-me o favor, a vida não é séria, é mínima. Não custa nada ficar calada. É só por uma noite. Falo muito para espantar o tédio, falo muito porque assim me divirto e evito diálogos sem sentido. Falo como se escrevesse. E hoje não escuto tiros, nem o forró com microfone na rua da Lapa, nem a briga do vizinho, nem os pássaros, nem a cachoeira, tampouco o start da geladeira. É um silêncio de domingo no bairro boêmio. E por ele chegam as ausências todas, confinadas num baldinho. Nem ligo o som, nem ligo. Repito que está silêncio porque estou sozinha, é isso. Não há como evitar essa dor, é impossível. Nem cantando os males espanto. Quero janelas e boca fechadas. É um perigo essa mistura de solidão e silêncio juntos e eu gosto de aventuras dramáticas. Na escuridão da noite iluminada por uma televisão amordaçada, a esquerda carrega malas de dinheiro então pra mim será sempre tarde demais, um mundo melhor não será mais possível, não sou mais oposição, nem rebelde, nem revolucionariamente escapista, nesta encadernação tornei-me urbanóide igual, hippie é neo-rural, sexo só com camisinha e afeto. Sambo às quintas, estudo à noite, espero os netos. Não sofro à toa. Faço questão de ficar muito amargurada. Mais que mar, mais que sal, mais que lágrima. Quero a amargura pura. Com poucas rimas. Quero que doa.

SOU UMA MÃE CORUJA DE EGO INFLADO

A vida não me daria saúde perfeita, emprego estável, filha maravilhosa, doce companheiro, casa confortabilíssima, conta bancária farta, amigos divertidos, viagens pra longe, carro possante, humor refinado, coragem. Porque não é do seu feitio dar esse mole para as pessoas. São raros os eleitos que possuem qualquer dessas sortes. Sou uma mãe coruja de ego inflado. Aceito as lacunas, as saudades sem remédio, as dores para as quais desconheço analgésicos de efeito duradouro. Aceito sua ausência nesse pacote de renúncias. A vida é parcimoniosa quando se trata de conceder milagres. Como queiras, caríssimo coração, que cales, caminharei quieta quase cósmica na língua do quê? Viu? Palavras servem também para jogos, para passar o tempo a ferro, não pedi-las mais a você. Guarde-as num cofre secreto. Vamos temer.

Gaivotas são urubus brancos, como garças, patos elegantes, mergulhadoras, acrobatas, atobás.
Hoje aproveito este interregno de borboleta e voo movimentos aflitos de beija-flor. Olha que os beija-flores não dão rasantes, não plainam, as gaivotas mergulham, cada um do seu jeito, credo, até as baratas voam, que coisa mais chata. Voar deveria ser glamour, mon amour, um explícito privilégio dos pássaros elegantes, dos carros possantes, dos homens, belos amantes, e das pessoas livres como eu e você.


TRILHA E SECRETA
No meu esconderijo tem uma trilha quase secreta que desemboca na beira de um riacho raso e frio com uma branca queda dágua e muita sombra. O sol vai lá, mas tem que ser cedinho. Colibris, jacus, esquilos, montanhas de pedras redondas onde o sol se demora na careca. Árvores nascem sobre pedras e se enfiam no caule das outras quando há buracos, feito cópulas, porque a vida quer continuar e nos usa, mero instrumento, queimando carnes na fogueira do desejo, mesmo quando já não podemos mais ter filhos, insensata.
No meu esconderijo é silêncio, o barulho é da água e de pássaros estranhos. Lá, não uso sapatos. Lá, não olho espelhos. Na porta da casa tem uma árvore de flor tão vermelha que o mundo não parece hostil e a natureza nos abençoa. Preciso do combustível desse doce e voluntário isolamento. Preciso ir viva ao paraíso nos fins de semana. A rotina me esmaga como uma sola de sapato pisa na formiga. Mas eu conheço um caminho de pedras que metamorfoseia. Hiberno e volto, disfarçada como se fosse a mesma, sem ser.

VELA, FILTRO, CORREIA E CEBOLÃO

Quatro visitas do mecânico, o carro pára na rua pela quinta vez, choro. Junta gente em volta e eu pago o mico, previsto no orçamento. Palavras novas em folha entram no meu vocabulário: rotor, aerofólio, variador de avanço. Outras mudam completamente de sentido: vela, filtro, correia, ventuinha, cebolão. Meu amigo chega de camisa azul turquesa, e atravessa a pista quase voando, encontra logo um fio solto, prende e o carro ronca, sai correndo feliz como um seminovo, meu negão cadete adolescente que eu boto o maior gás e ele sempre morre comigo. Rimos. Acho poesia num enguiço.

QUANDO CRESCER QUERO SER METÁFORA
Há cubículos na Penitenciária Lemos de Brito que são verdadeiros brincos. Tudo tem grade: a escola, a igreja, as oficinas e até a janela do quarto de Jesus num quadro pintado a mão por um preso.

Girassóis, estrelas do mar, afogo-me num amar de risos porque a metáfora é tão boa e a poesia voltou pra mim como um amante arrependido. Encheu meu coração de rimas e de ritmos que não comando. Às vezes penso que ela foi embora, que fiquei velha, que fiquei triste para sempre, que caí na mediocridade de ver novelas, juntar dinheiro e sentir dores, medo e ciúmes como todo o mundo, que minha dor só vai me fazer chorar e chorar e é quase à toa, olhos marejados, rio de lágrimas, disfarçadas feito pecado, é proibido ser triste, é feio chorar escondido, e se alguém me pega? Entrego-me à avalanche das palavras e nem me ligo nos significados, que desculpem e descubram os leitores, quando eu própria tiver me transformado numa metáfora, numa onomatopeia, numa metonímia.
Quando crescer, quero ser metáfora. E morar na poesia, na tua, que quero uma por dia, te espremendo assim com toda a força o coração, o peito, o choro, o desejo, o medo, a alegria exagerada que nos envergonha porque o mundo é triste pra caramba, cheio de gente com fome e ladrões de merenda, e ainda assim quero teus versos diários, vindos pela estratosfera via satélite num rabo de foguete, quente como fomos, como poderíamos ser de novo se habitássemos o mesmo planeta, se nos encontrássemos por acaso numa revelação bem na esquina, se clicássemos com a retina e pudéssemos saber da cara um do outro sem o recurso de olhar fotografia, porque já pintei o cabelo e você nem fez a barba, talvez hoje eu seja loura, eu seja outra, ou louca, como saberias? A rotina nos massacraria, a culpa, nossas diferenças. Guardo teu olho de rasgar meu corpo numa lembrança bem curta, foi um flagrante, um olhar quase um delito, tu não me olhavas, me espiavas, sei do desejo e da desconfiança. Nunca me encontrarás fora das letras, fiquei na margem do rio, numa tenda onde nos abraçamos como dois estranhos, suados e aflitos, quase arrependidos. O telefone da loura ficou escrito no programa. O mundo está cheio delas, nelas tropeças, contas, casas, nunca tendas, nelas filhos.
Eu fiquei com o coração aos pulos olhando o sol se pôr na beira do rio, com todos os ciúmes que senti na vida, amalgamados na violência daquela cena. Nunca me encontrarás porque eu não estou no Rio, estou no epicentro de um mundo melhor que desmontaram depois do evento, vento. Invento combinações de palavras malucas e fico aliviada e satisfeita, como se por algumas horas eu habitasse outro universo, o nosso, de verso. Tu sabes quanto tempo leva uma poesia, quanta alegria, quanto transbordamento. Semana passada eu não conseguia escrever uma linha de poema. Cheguei no trabalho como quem chega no inferno alegre porque existe vida depois da morte, e abraça o capeta. Mas temos sorte, a poesia me possuiu de novo como um macho de personalidade forte. Fecho os olhos e teclo, teclo, teclo, sem olhar, como se pianista fosse e ouvisse música. Como se psicografasse. Como se um girassol se curvasse, como se uma estrela cadente nos acertasse. Nunca seremos consumistas. Nunca meras conquistas. Temos poemas nascendo de dentro da cabeça e isso é milagre. Somos fábrica de enrolar palavras, com elas desmanchamos o mundo da cobiça. Quem tem metáforas guardadas dentro do corpo não compra celular último tipo. Tem preguiça.

Esperávamos pela mágica do amor, ela passou batida. Meu grande amor já tinha tomado outro rumo no vagão da frente. Foi-se. Levou-me no bolso como um souvenir de viagem. Guarda-me assim, como um retrato, enquanto a lua mingua, o sol se põe de lado, e nuvens carregadas de lembranças tão tolas quanto as nossas atravessam os cantos do céu criminosas. Ora, flores morrem todos os dias.

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