Os que morreram continuam a fazê-lo todos os dias. Mamãe, quero telefonar-te, só isso. Aceito tua morte mas me recuso a nunca mais ouvir tua voz na linha, preciso te contar detalhes do que se passou comigo nos últimos nove anos, mas eu não tinha ideia de quanto tempo teria que viver sem você do outro lado. Não tem mais endereço, nem número. Falo sozinha e pego o gancho feito maluca, questão de segundos. Depois escondo o pensamento e digo que a mãe sou eu, que agora a mãe sou eu e fico te imitando.
Seu namorado morreu, fiquei sabendo ontem. Nem dei adeus, nem fiz visita, estava ocupada recortando classificados, conferindo extratos, refazendo contas, tonta, dei uma choradinha depois voltei pro carrossel da vida. Mães morrem e amores mágicos passam batidos enquanto estamos distraídos. Isso é eterno, imprescritível, definitivo. Por isso não carrego fardos. Reinvento todo dia a nossa história. Nunca é a mesma, eu sou criativa. Na real, ninguém ressuscita, ninguém grita, ninguém agarra a magia porque ela é matéria feita de vento. Estou viva e é uma questão de tempo. Eu, você, nossos amigos e a torcida do Flamengo. Você, me leva no bolso como um souvenir porque eu sempre trago lembranças, eu poderia ter sido e não fui, esta é a razão de estar leve como uma folha de papel em branco onde o meu mágico amor, aquele que passou batido, pode escrever ideogramas, desenhar palavras em letra de forma porque nada entre nós é proibido, nem a pétala morta dentro do livro é cafona. O tempo é sempre curto, que ninguém se iluda. A elasticidade dos sentimentos relâmpagos é o que assusta.
O MUNDO ESTÁ FICANDO DOIDO
Sem querer sou ríspida com minha amiga porque um homem cheirando cola para na frente do carro onde estamos as duas sozinhas de noite e diz coisas pedindo dinheiro e levanta a camisa e mostra uma ferida de faca com sangue na barriga e minha amiga vira o rosto com um grito e cobre o rosto com as mãos e eu brigo com ela porque queria que ela fingisse que estava tudo normal, ora, não devemos demonstrar medo, pode ser um assaltante, vai crescer pra cima de nós, fique impassível, brigo, disfarça, ora, como se nada estivesse acontecendo. Que amiga descontrolada! Depois me arrependo e peço desculpas a ela. O mundo está ficando doido e quer nos levar com ele.
UMA VIDA SEM CACHOEIRAS
Visito uma cidade tão pequena que tem o mesmo número de habitantes do meu prédio. Aos poucos as crianças e até os cães me reconhecem. Nem celular pega em volta dessa praça onde a comunidade constrói com as próprias mãos casas para os desabrigados.
Quando volto de lá, depois de tirar meu violão do sótão imaginário e aprender músicas de luar do sertão e de serestas com acordeon e fogueira, sou mais frágil.
Em vez de retornar energizada para o enfrentamento da cidade maravilhosa, volto mais sensível às cenas de rua, mais deslocada, e procuro em vão um sentido para o meu dia-a-dia. Um sentido para uma vida sem cachoeiras.
O mundo vem de aeroporto, vem de metrô, e transborda o Rio de Janeiro para ver os Rolling Stones cantarem na praia de Copacabana. Passo a chave na porta e giro três vezes, troco as cordas do meu violão balzaquiano e juro que dessa vez aprendo. Fecho bem as janelas, ligo o ar e me escondo. Tenho medo do Mick Jagger.
Queria acordar amanhã com barulho de vaca e bezerro, de galo e pássaros, e rever as oito estrelas cadentes que me emocionaram deitada sozinha na grama úmida, vendo um céu tão cheio de estrelas e centenas de vaga-lumes que lá estão todas as noites enquanto eu me pergunto o que é uma vida sem vaga-lumes.
AS IRREGULARES TAMBÉM SÃO FILHAS DE DEUS
Rita Abreu escreveu: “Bem, hoje descobri que ter carro e como ter um tamagoshi: tem que dar de beber, banhar, cuidar, e pagar impostos e fazer vistorias. Escaparam-me esses últimos detalhes. Portanto, estou com a documentação do carro irregular desde o ano passado e nem desconfiava de nada. Agora que descobri, estou receosa de viajar com ele. Mas, se for necessário, encaro numa boa. De qualquer forma, quem está indo com você? O negão está em forma, né? (E nos deixando em forma na sauninha motorizada).
Respondo:
Oi, amiga irregular.
O meu negão está semi-irregular pois perdi os documentos em Búzios, lembra? Tentava achar minha câmera na bolsa que continha até primeiros socorros, para fotografar um quiosque em chamas, quando uma onda quase me derrubou, o celular tocou e meu sobrinho pequeno começou a chorar porque queria sorvete. Foi a última vez que vi a bolsinha cor de abóbora onde guardava guardadinho meus documentos, todos em dia. É a vida. Seguimos regularmente, bate uma onda, dá um vento, e irregulamos. Mesmo desregulada, tenho os documentos do antigo proprietário, além de notas fiscais de compra de pneus, bateria, rádio, CD player, compressor, caixa de marcha, limpador de pára-brisa, filtro, correia... enfim... o carro pode ser roubado mas os acessórios TODOS são meus!
Rita, acho melhor você ir com seu carro, mesmo irregular. Pode deixar que eu faço a escolta. Leve seu tênis pra gente fazer um campeonato de vôlei. Quem pegar mais bolas no riacho ganha.
O guarda não vai nos prender: cinco senhoras de respeito com amnésia pré-menopausa, meio desreguladas. Rita, toma gingobiloba, ou gingobiroba, ou ginga-bi-loba, ou será Bingo de Loba? Esqueci. É um remédio ótimo. Melhor que loucadil. Eu tomo e veja como estou lembrada.
PERDIDOS ROTEIROS
Eles tomaram vinho branco, conversaram e namoraram muito, estavam alegres. Ele disse: Eu vou embora. E levantou-se. Ela o imitou e disse: Tá. Eles se abraçaram e ele repetiu, mais sério: Eu vou embora. Ela ficou em silêncio porque havia perdido, ao longo dos anos, o roteiro das falas. Mostrou pra ele seu rosto desconsolado. Ele puxou-a suavemente pela mão, sentaram-se na cama arrumada. Ele perguntou: E amanhã? Amanhã de manhã você acorda e vai embora, ela respondeu. E depois? Ele perguntou. Você liga quando quiser, ela respondeu. Ele a abraçou com força e sorriu, autorizado. Ela também sorriu. Era a terceira vez que se encontravam e a primeira que ela acertava as falas. Então eles fizeram amor. Foi isso que sucedeu.
GRÃOS DE VIÇO
Ela vai levar de mim, diariamente, um pouco de alguma coisa: grãos de viço, farelos de esperança, cartas da manga, coringas, bilhetes premiados, estofos, enchimentos, gotas de memória. A chegada dos cinquenta anos vai me equipar de uma profunda sabedoria, mas tão tardia que terá apenas uma serventia: aceitar o cinquentenário irreversível como se aceita uma doença incurável.
NÃO QUERIA QUE OS CINQUENTA ANOS ME ENCONTRASSEM ASSIM
Não queria que os cinquenta anos me encontrassem assim: estou mal vestida, cheia de tinta na cabeça, veja, como posso abrir a porta? Não me preparei, não fiz economia e nem as unhas. Pensava que estavam a caminho, a pé, aproximando-se com serenidade. Nunca poderia imaginar que pegariam uma ponte aérea.
O CINQUENTENÁRIO DAS MARGARIDAS
Os velhos se esquecem. Leia mais e use metodicamente a agenda diária. Os velhos ficam sérios. Ria, ria mesmo sem um motivo aparente. Os velhos caem. Fortaleça seus músculos numa academia sem música. Os velhos falam sozinhos. Os velhos ficam sós. Cultive os bons amigos como se fossem flores delicadas.
Continuar jovem “por dentro” é uma faca de dois gumes. Sentir atração por jovens de verdade, impulsos de mudar de profissão, vontade de aprender balé clássico, mudar móveis de lugar sem pedir ajuda, encher a cara e trabalhar no dia seguinte são, entre muitos outros, desejos que tendem a frustrar-nos.
E quando minha amiga disse para seu psicanalista que morria de medo de ficar velhinha e ninguém mais querer trepar com ela, ele respondeu sereno com sua voz de psicanalista:
- Pode ficar tranquila que a perversão sempre vai existir.
QUANDO FIQUEI NOVA DE NOVO
Recentemente, quando fiquei nova de novo, examinei a bagagem. Separar o que vale guardar do que devo reaprender. Sabendo que nunca saberei quantas vezes errei ao selecionar: largando o que deveria agarrar, levando o que já se estragara.
UMA ROTINA QUE NÃO DEIXA RASTROS
Acordo mansamente para uma rotina que não deixa rastros. O coração sossegado, a semana recomeça ritualisticamente. Os sobressaltos ficaram para trás, e com ele os fantasmas, sem nenhuma agonia, levanto da cama funcionária, farei contas em dinheiro e anotarei meus gastos, coração vazio como um copo de cabeça para baixo.
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