A cidade tem muitos cantos. Por isso posso olhar seriamente o mar de
longe e sofrer porque a vida não é longa e temos que carregá-la conosco como
uma mala de casco de tartaruga.
Por isso posso experimentá-la, tendo-a esquecido. E apontar o Museu de Arte Contemporânea, tão pequenino do outro lado, como quem mostrava os micos da Lagoa pras visitas.
Mudar de endereço é rever faces que tivemos, reconhecer, estranhar, às vezes
sequer identificar. É ver surgir num retrato de infância o nosso olhar
eterno, uma essência que já nasceu conosco e que permaneceu, com suas belezas e imperfeições, apesar das cores de cabelos que tivemos, dos corpos que habitamos e que se transformam diariamente, apesar dos penteados estranhos, dos amigos perdidos, dos amores que morreram para sempre, dos que não morrerão jamais, dos mortos, dos feridos, dos convalescidos e ver surgir o nosso olhar eterno como num espelho: essa sempre serei eu.
Em Búzios comprei uma biruta que pendurei no alto da casa do Alto Glória, na esperança de que um helicóptero extravagante jogue um puçá e mude minha vida.
Somos duas em casa agora.
Vontade de voltar pra casa porque há um canto que me espera impregnado de referências e enfeites. É pequeno. Lá, meus pertences não cabem, livro-me do desnecessário, amplio seu conceito, obrigo os objetos escolhidos a fazerem contorcionismo e me conformo: morando sozinha no Rio definitivamente não necessito de três cobertores.
Vi papagaios rondando a minha nova casa no alto e ouvi o assobio dos saguis sem vê-los.
Bem-te-vis gagos comentavam entre si seus nomes. Bem no
miolo do Rio de Janeiro. Talvez em breve eu possa desempacotar-me. Morte simbólica, sumiram de vista meus objetos,
meus caminhos de ida e volta. Desgovernei-me na primavera. Mas a cidade é mágica por isso, porque não perdeu a inocência selvagem dos bichos. E andando meia hora ou menos estou no Centro. Cinelândia é nossa praça europeia e nosso depósito de meninos. Cine Odeon marcando os bons tempos. Por baixo da terra os trens nos
levam pra Glória. Uma estação nos separa.
O Aterro do Flamengo era meu cineminha diário pra ir pro trabalho que não me cansava de admirar do ônibus. Cinquenta minutos da porta de casa à porta do trabalho se transformaram em quinze. Agora virei mulher subterrânea sobre trilhos,que se vê refletida na janela escura.
Quando o locutor em off avisa: Próxima estação, Glória! tenho a confiante tranquilidade que passar do ponto distraída é coisa do passado. Ouço meu nome e entendo: minha estação chegou.
Quando fui morar no bairro da Glória, sentia-me homenageada porque a papelaria, o caminhão da transportadora, a
cooperativa de táxi, a pensão, o hotel, o teatro, o outeiro, tudo se chama,
como eu, Glória. Até o Pet Shop é Bicharada da Glória. Tem rua com placa: Acesso à rua da Glória. Eu era a própria Joana Angélica, viva, passeando pelo
calçadão. Um mês depois, estou saturada. Lá, eu me sinto como se perguntassem meu nome, e eu dissesse:
- Ipanema. Meu nome é Ipanema.
Leila, estou satisfeita com minha casa-malhação, no alto do mundo. Acho que finalmente vou ter bunda. Subir escadas dá bunda? Subo na boa, só não posso olhar pra cima que me dá vertigens e acho que não vou conseguir. Mas já coloquei uma cadeira em frente à sua casa, para descanso entre os primeiros cem degraus e os próximos cem.
Assim teremos nossa prosa diária garantida.
Um amigo enciclopédico me disse que duzentos degraus equivalem a doze andares. Sem contar que estamos no alto de uma ladeira. É por isso que quando deito na minha cama, abro as janelas, e fico admirando a vista, o que vejo são gaviões, urubus
e aviões sob o fundo azul do céu. É muito céu. É céu pra cacete!
Se existir Deus, vou acabar dando de cara com ele. Algum recado?
Se existir Deus, vou acabar dando de cara com ele. Algum recado?
Subo a minha ladeira caraminhola, os degraus íngremes que me afastam das picuinhas, dos rastros, das rasteiras, e suando chego no alto do mundo, onde aviões passam por dentro da minha cabeça, micos entram na minha cozinha pela porta, papagaios gritam em bandos uníssonos em polvorosa, bananeiras gemem noite e dia em lenta agonia, a cadela negra decola, sobe e desce a escada repetidas vezes como um elevador louco disparado, sem cansar-se, pêndulos, marés, ponteiros, até o tempo voar pra trás, paz na
minha cachola, novela, livro ou foto em preto e branco. Alternativa,
ensolarada, quieta. Ouço ao longe os disparos e os sustos das festas regadas a
música antiga e longínquo falatório.
Não jogo as tranças.
A pé, escrevendo em blogs que ninguém lê, sem talento para relacionamentos, sozinha, trabalhando onde trabalho para sempre e nos fins de semana andando no calçadão até o cu fazer bico. E aí? Depois dos quarenta não tem mais história? Não quero a entorpecência dos drinques e das trepadas fáceis, os mesmos papos inúteis reclamando de homem, adivinhando pensamento de homem e antecipando a menopausa. Quero a alegria ou o silêncio. Livros, e paciência para suportar o desfile de dias gêmeos e enfileirados e chatos como soldadinhos na parada. Que inferno. Ouço fogos de artifício. O lugar onde moro é um subúrbio alegre, as ruas são feias, as fachadas não vêem pintura há anos, a calçada é emburacada e desigual, repleta de cadeirinhas com bêbados em cima e falsa alegria, mentes alteradas.
Orelhão não funciona, lixo acumulado, tudo é ladeira. Vivo suando, bufando e carregando sacolas com comida. A grana é curta. Se tomo um chope, fico culpada. Se pego um táxi, fico culpada. Quero um volante, um guidón, uma manivela para reverter isso! Quero a depressão de volta. Penso
em abolir meu remedinho. Quero ficar inconformada, insone,
deprimida, chorando à toa, quero rebelar-me.
Desde menina tinha horror a isso: a maldição dos
alegrinhos. Quero parecer desgostosa. Detesto os velhos desleixados e
barrigudos que me paqueram. Detesto os homens jovens que me ignoram. Quero usar burca, dormir pelada, cortar
pelanca com a faca, esfaquear-me.
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