Finita como flores

18 de jul. de 2010

A vida será curta de qualquer maneira

A VIDA SERÁ CURTA DE QUALQUER MANEIRA
Minha avó materna e meu pai morreram com pouco mais de cinquenta anos. E eu, cinquentona desajustada, uso saia justa e arrisco meio umbigo de fora. O desejo, quando volta, me alegra. O sono, quando perco, me irrita. Os amores mais fortes permanecem congelados como alimentos esquecidos no freezer. Não são comida caseira feita na hora. Ao longe, um copo quebra, um samba toca, burburinhos da Lapa. Estou no limbo.
Sou coroa, meio umbigo de fora, tenho uma casa alugada no útero de Minas e outra no coração de Búzios. Não quero que me classifiquem. Minha filha disse que sou barroca porque enfeito demais o apartamento. Tenho horror ao vazio e ao silêncio. Meu ex-amante, que nunca se explica, diz que eu sou prosaica, mas não se lembra de ter dito isso. A memória dos ex cabe numa chicrinha.

Meu desejo é como uma caravela em busca de Américas. Quero um continente totalmente novo e assumo o risco do naufrágio. Nunca uma geração que nasceu nos anos cinquenta viveu os cinquenta depois da virada do século, e por isso eu sou parte de uma fatia de enxutas que não pode ser estudada agora. O objeto da pesquisa está vivo e incerto. Deixem-me para depois. Integro uma experiência em andamento, calma! O coração raramente, mas dispara. Hormônios ainda gritam, prazo vencendo. Esperemos. A vida será curta de qualquer maneira. Eu estou cansada, mas estou inteira.

BISCOITOS POR BEIJOS
Domingo é dia de visita no orfanato. Passo a tarde brincando com as crianças. Levo biscoitos e ganho beijos. Todos pensam que sou boa porque fiz um sacrifício e estou ajudando os outros. Mas a órfã sou eu.

O QUE EU VIM PEGAR AQUI?
A insônia e os “brancos” atingem pessoas de todas as idades, e populações inteiras passam o tempo em busca de sono e de palavras. Nesse momento há milhares de seres humanos com a porta do armário aberta e uma cara vazia pensando: o que eu vim pegar aqui? Ou mudas, paradas feito mulas no meio de uma frase e desistindo da palavra: daqui a pouco eu me lembro. Nesse momento há centenas de milhares de pessoas que acordarão no meio da noite. Não há idade para perder sono e palavras. É moda de época. Quando eu era jovem não acontecia. Vovó tinha uma memória de elefante e vovô, um sono de chumbo.
Em que momento perdemos os sonhos e a memória? Resposta: Quando enfiamos um montão de porcarias na cabeça, pensamos em três ou quatro coisas ao mesmo tempo, temos medo do Jornal Nacional, mas assistimos mesmo que com isso esqueçamos tudo de bom que porventura tenho nos acontecido naquele dia, lemos e esquecemos más notícias em frações de minutos, devoramos calhamaços de inutilidades que se fragmentam em instantes, engolimos informações parecidíssimas de CPIs do Congresso misturando siglas e nomes de corruptos no liquidificador da lembrança. E ainda queremos dormir, sonhar e lembrar o nome do autor do livro A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada.

ROSAS, GRAMA, RIO, RISOS, RISCOS E ESPINHOS
Sonhava com isso: uma longa estrada de terra que eu não conhecesse, trilhando sem saber se acertara o caminho, e ao final a surpresa: uma cachoeira do tamanho de um prédio esvoaçando os nossos cabelos com seus pingos miudinhos. Em algum lugar há um deus que se encontra, feito de água, de pedra, de passarinhos.
Fujo dos desconfortos, sei. Fujo do que era amor e foi morto, fujo dos sonhos que tinha contigo e que eram inacreditáveis como história inventada. Lá, onde os rios nos circundam, toco a desigualdade, misturo-me, ensino tabuada e aprendo a ganhar beijos. Lá, onde o rio corre dentro de casa e as rosas enriquecem as fachadas coloridas, não há grades cercando edifícios, nem câmeras de vídeo garantindo nossa segurança, há olhos curiosos que nos espiam pelas janelinhas que dão na calçada fina e flores multicores por todo o canto.
Com que encanto as crianças se enfeitam para dançar no caminhão que se transformou em palco, onde o violeiro enche o arraial de melodia porque de qualquer lugar se ouve a cantoria e é sábado de aleluia, por isso estamos contentes.
Na cidade grande agora chove e eu uso uma espécie de galocha caipira como um emblema. Não sei se chove lá, onde deixei um fusca balzaquiano e um jardim inteirinho repleto de mudas pequeninas garantindo que eu um dia também terei rosas, grama, rio, risos, riscos e espinhos.


O PRIMEIRO DEFEITO A GENTE NUNCA ESQUECE
Ele deu defeito. Foi-se sem mexer em feriados. As mulheres não conhecem os sentimentos do homem, mas o seu funcionamento.
Tardiamente preparo um futuro que já chegou enquanto vivo acontecimentos episódicos. Os pés e os prós estão bem plantados no chão e eu tenho isso: casa, trabalho, fusca, filha.
A Lapa fervilha. Mas eu não gosto de festa de rua. Viajo, numa aula, para a América pré-Colombiana e conheço a narigueira. Quando se interfere no imaginário de um grupo, ele se desestrutura e se torna subjugável. O Mercado superexpõe o artista e com isso a arte perde sua magia. Não penso em publicar livros como não pensava quando escrevia desde antes dos vinte anos. Outra coisa tem me aproximado de quando eu tinha tão pouca idade: uma desorientada saudade, sem alvo fixo.
Os Astecas receberam os espanhóis como deuses. E foram dizimados por eles. Os Astecas conheciam o zero, o vazio e o nada. Eram guerreiros e não faziam alianças. Os Astecas ficaram horrorizados com Cristo na cruz, recusavam-se a rezar para um deus morto. Preferiram Nossa Senhora. Mais bem vestida, limpa, viva, calma, pele boa.
Fui tupinambá e preciso ser entendida levando-se em conta este aspecto. Circular pelada pela mata como uma criança refrescando-se em cachoeiras, e possuindo um comprovado riso frouxo deixou em nosso povo marcas profundas, por muitas e muitas encarnações a fio. Conosco era assim: cada morto tinha direito a ser chorado histericamente durante algumas horas seguidas. Depois a vida continuava. Os prisioneiros de guerra eram tratados como membros da tribo até que engordavam, eram mortos e ritualisticamente comidos. Morria-se, desta forma, como um herói, jovem e exigindo vingança. Ou como um sábio, velho e dando conselhos. Nos novos tempos, a morte perdeu o estilo. Envelhecer não é de bom tom nas rodas que usam grife. Ora, com tanto recurso.

QUEM NUNCA COMEU ESTRELAS NÃO SABE O GOSTO
O ser humano é basicamente um bicho que se acostuma. Quem nunca comeu estrelas não sabe o gosto. Assim, dessa maneira, o mundo vai diminuindo. Nunca sair do Brasil, dormir uma noite agarrado, soluçar num ombro amigo, olhar no olho, cobrir-se com lençol de seda, ser aplaudido de pé, passar um mês inteiro de sandália havaiana, nadar pelado, gastar muito dinheiro sem culpas, dormir sob um céu de estrelas, ser amado, aventurar-se. Tentei? Tentaste?
Há pessoas que se acostumam a viver pequenino, a sonhar baixo, a receber beijos indiferentes, a ouvir frases de amor decoradas, a tirar férias para estudar, domingos para ver tevê, sentir medo e achar que é natural. Sofrer dores e não procurar remédios, ziguezaguear na rotina banal e não sentir tédio.
Ora, é possível morrer e continuar transitando, respiração controlada, pressão estável, frases feitas boca afora. Morrer é perder desejos, sonhos, planos, irreverências. A tudo o ser humano pode adaptar-se. Esse é o verdadeiro defunto, o adaptado.
O morto com atestado de óbito tem chances de baixar num terreiro, de alcançar a vida eterna, de renascer minhoca.

LÁGRIMAS USADAS
Quase nunca dói mas quando dói dói demais. E vem pela via do sonho, me fisgar mais um pouco, aquela dor lá de longe que eu pensava em farelos no triturador automático de lembranças moídas, bicho este que se alimenta de memória viva, mas sobram nacos inteiros, de sofrimento tão velho que eu pensava enterrado. Nem o tempo, nem os últimos acontecimentos, nem o esquecimento, nem o instinto de proteger-me, evitaram que o trauma antiquário pulasse um salto em minha mente e me arrancasse lágrimas usadas, dormindo, tão grossas quanto antigamente.
Você atravessou a minha vida e atravessado ficou impedindo que eu vivesse outras histórias. O tempo já nem passa, instalou-se. Se eu for pro inferno estarás lá fumando cachimbo. Se eu for pro céu terás asas. Desisti de livrar-me do que parecia um encosto. Domingo estava tão cansada que encontrar-te foi um bálsamo e todas as tuas perversões soaram inofensivas como criança brincando de médico debaixo da mesa escondido.
Fora isso, tenho meu séquito, faço as minhas brincadeiras. Os anos passam e a gente vai voltando a ser menina inconsequente. Muitas perdas, poucos danos. E o que temos de ruim já nascemos com o defeito ou instalou-se muito cedo, nos primeiros traumas. Agora calma. Aos quinze e aos cinquenta não se tem muitos planos. Só queremos uma coisa, obsessivamente: abarcar o mundo inteiro.
Cada história é única. Se o que vivi compõe o que sou, o que viverei pode me transformar, estamos combinados. Não fui mumificada, tenho certeza absoluta que estou viva, um súbito e longo e inesperado beijo encaixado vira o mundo dos sentidos de cabeça para baixo.

ÁFRICA GRÁVIDA, O PLANETA AZUL NÃO É REDONDO E TE IGNORA
Minha África de panos coloridos, onde a morte se instala e a mídia não fala, onde perco meu negro todo dia, em absurdas estradas que te levam e te trazem como um pensamento, dor, unguento, e a cobiça de todas as raças te abandonam à mingua fingindo placebos, e crianças que se perdem das mães como perdi a minha, e doenças que te matam para desocupar-te deixando simplesmente que morras jogando fingidos remédios despencados em tua cabeça, de aviões que despejam a culpa em pacotes de alimentos, a imprensa tirando retratos encomendados para os olhos cegos do mundo, que globalizado desmama teus filhos espalhados pelo planeta num silêncio estrondoso que ofusca mesmo os batuques mais alegres, esvaindo-se escarlate na beleza de teus ritos.
Minha África suicida, barco à deriva cortado o cordão umbilical que ligava o navio ao bote, ninguém olha para trás, ninguém berra tua morte, nenhum século grita de dor enquanto planejam um continente desabitado em meio a partos de esquálidos bebês sem direito à vida, terra mãe querida, amordaçada num mar de dialetos, tua música não alcança a lógica dos mercados, teus rituais se infiltram recortados, sincréticos, adaptados, enquanto fingimos levar-te conosco, mas a verdade é que teus rebentos se arrebentam todos os dias em lenta agonia merecendo notas pequenas na imprensa, empresas de urubus voam nos teus céus vermelhos de sangue centenário. Escravizados foram meus irmãos de pele de chocolate, noite, mate, escuridão no corpo e no ignorado calvário, pátrias assassinas, óbitos sem atestados porque médico nenhum assina, negra, contaminada e menina, teu povo miscigenado pelo globo inteiro, tradição de cativeiro, assombrada, assombro de tribos que tu mesma exterminas, costumeira carnificina.
Minha África cinematográfica, berço do homem, onde as ancas gingam, onde os ombros soltos dançam a sensualíssima dança dos deuses, das colheitas, das lutas, caças, dos banhos de rio, dos Orixás vaidosos, guerreiros, mãos espalmadas, pés livres de calçados, matreira, guerreira, pulsando ritmos de tambores, capoeira, uma nação inteira, tão repartida, pátria sofrida, de onde veio nossa comida, nossa tradição brasileira, ora, no carnaval ninguém dança o fado, herdamos a ligeireza de pés calejados, o molejo, não a saudade do Tejo, minha saudade chora quando escuto teus toques, porque te esquartejam enquanto sou partida, e o mar que me aparece em sonhos é sempre a água da despedida, dos quatro horizontes, a salgada água que separou inteira a nossa grande família.
África ensolarada, que me faz duplamente órfã, mil vezes impotente, sonhando com um crepúsculo ardente, com um canto de cisne negro, como um doente que agoniza e ninguém se horroriza, porque somos todos uns desmamados, ignorantes e desabitados, vivendo à margem dos fatos, e já estamos meio mortos, quase enterrados.
África grávida, o planeta azul não é redondo e te ignora. Tua prole desconhece a própria origem e à toa chora. Sente uma dor sem nome. Sente um amor sem nome. Pensa que vive e todo dia morre. Fisgadas no umbigo, e a sensação incurável de não-pertencimento. Como se fosse a vida sem nascimento. Perdemos a mágica. Morreremos todos engolindo sapos, como filhos ingratos.
África de matricidas, de herdeiros aculturados, de riquezas ensolaradas, terras virgens, morte espalhada, lá, do outro lado do horizonte onde os gritos não alcançam, onde as notícias se escondem e os horrores secretos não são temas constantes porque o assunto da realidade pré-fabricada do jornalismo te exclui como uma chaga.
Por isso choro, por isso nunca estou inteira, sinto-me repartida, nunca repatriada, estou sempre em falta, sempre em coma, sempre ouvindo batuques na Lapa e sentindo-me estrangeira, solitária. Lembranças em sonhos do tempo em que fui escrava, do tempo em que fui rainha. Com roupas coloridas e adereços danço e enfeito minha prole. Há marcas no meu corpo e tons na minha pele. A água fria e límpida do mar que nos separa salga-me a ferida e aplaca a minha febre.
África, sonho contigo como berço, como prole falsamente alourada, como criança secretamente adotada, como fruto e como filha, como lago e como ilha, como o todo de que um dia fui parte.

ACHO A TRISTEZA LINDA SÁBADO À NOITE, POSSO?

Quando escurece, é natural que as ferramentas de consertar o mundo e organizar amores transbordem cabeça afora porque se me derem uma ideia naufrago em desdobramentos e assusto. É natural que desligue o aparelho e não receba mensagens, que silencie o celular para que nenhum ruído me atrapalhe a solidão escolhida. Não fiquei no samba, não furei ondas, furei. Disfarcei e saí de fininho porque não deu o clique. Nada vibra, exceto o telefone que ignoro. A semana só não é monocórdia porque invento prazeres, aceito convites, confiro. E brinco de qualquer coisa porque a vida brinca comigo do mesmo jeito e passamos uma pela outra tão rápido que me perco nas agendas que anoto e não leio, nas fotos que tiro e não vejo, no encontro que marco e falto sem culpas. Meu coração é quem dita, quem premedita, quem me esconde recados. Segui-lo é seguir-me. Tudo que poderia ser trágico, patético, fica engraçado na vida e rio de mim como quem vai ao cinema só se for comédia. É a despretensão da vida que chateia. Deixo a imaginação bem solta para que alce voo e me leve bem leve a caminho. Meu ninho é pequeno e nele me aconchego quando chego para jogar palavras e adoçar meu ânimo. Querem que eu esteja sempre alegrinha, mas dá licença? Posso chorar de noite, salpicar de sal o poema, amargar como água do mar, como lágrima? Acho a tristeza linda sábado à noite. Posso?
Quem quiser dançar que dance. Daqui ouço música brega, escuto vozes bêbadas longínquas e nada há que me encante hoje, decidi-me pelo orgulho de ser diferente. Acho a natureza humana chata e de vez em quando preciso cortar com ela. Assim me fortaleço supondo-me diferente de toda essa gente que quando chove, diz: É o tempo... Gosto de conversas intrigantes e de pessoas complexas, confusas e engraçadas. A menina gorda que mora nas ruas não me pareceu infeliz e isso me encanta. Meu amigo lindo toca violão e me falou de cifras. A imprensa só noticia desfalques e elenca cifras. A mídia se aprimora em oferecer más notícias e ainda se gaba por ser transparente, eu não acredito, é mentira dela. É mentira que a realidade se resume a ladrões de merenda, arrastões na praia de ladrões sem peixe, futricas na câmara, assassinatos macabros, denúncias sem devolução de dinheiro, casamentos badalados de atrizes, festas de bicheiro, capítulos baratos de novela e outras asneiras. A beleza não sai no jornal de hoje em dia. É a porcaria travestida de informação o foco, faróis dos veículos. Pego meu carro preto e pego a estrada quando posso. Gosto de transportar-me. Por isso quando cruzo cidades eu me liberto. Os azedumes não me alcançam, perdem-se no espelho retrovisor. Só os anjos que pegam o sol das ruas conseguem voar na minha cabeça. Viu? Já nem estou mais amarga. A realidade é uma história inventada e vez por outra se transmuta. Adoro gente que viaja. E que dá gargalhadas jogando a cabeça pra trás. E que descobre coisas, ao passo que a massa amorfa pisa na beleza enquanto caminha apressada. A turba tem pressa. É afoita. Bom mesmo é navegar em ideias tolas, de noite, quando o mundo vira um sábado à noite afobado. Continuar irreverente. Ignorar essa gente que circula anos feito pêndulo, monocórdia. Quem quer marchar com a massa que marche. Eu me iludo satisfeita supondo que mudo o mundo transgredindo uma transgressão que ninguém nota. Mas isso também não me importa. Oscilo entre o tédio, o ódio às notícias fajutas, o orgulho besta de pensar-me ovelha desgarrada das ovelhas, iludida, pois se passei a semana almoçando de olho no relógio, que transgressora é essa, me diga! Tenho pensamentos rebeldes, esse é o meu mote. Quero reinventar a vida, os relacionamentos. E não ligo a mínima se você disser que o mundo novo só cabe no meu pensamento.

DESCULPE O EXCESSO DE SINCERIDADE
Você mandou um e-mail pra ela dizendo que sua chegada foi a coisa mais importante que aconteceu na tua vida. E que a segunda mais importante foi sua saída. Em mil novecentos e setenta e nove, é isso que torna a mensagem descabida. Minha amiga fez igualzinho a você. No meio da noite, mandou uma mensagem para um ex-namorado que não vê há quinze anos dizendo que ele foi a melhor trepada até agora. Ele bloqueou seu remetente.
Arrependida, e senhora, deixou mensagem eletrônica cifrada pedindo desculpas. Ele está casado, calvo, com três filhos, gordo, morando na Bahia, recuperando-se de um câncer e do uso abusivo de drogas.
Vai ver nem se lembra mais que um dia trepou tanto. Vai ver ficou com medo que quisesse relembrar loucuras afogadas na turva memória. É preciso controlar o excesso de espontaneidade. Traz mal-entendidos, quebra encantos. Pessoas gostam de amenidades.
Vamos tentar nos ver, sim, embora não sejamos encontros marcados. Às vezes a gente se esbarra e nunca estamos iguais. Nos conhecemos num festival de teatro em Recife. Você era ator, eu escrevia poemas escondido e nem tinha vinte anos. Nos reencontramos quando você formou-se em Psicologia e atendia num consultório. Eu era atriz de uma peça em cartaz. Anos depois você estava executivo e eu professora de tecelagem manual. Fomos jantar. Você pagou a conta e usava terno bem passado.
No ônibus, você vestia bermudas de tarde num dia de semana. Ensinava italiano. Eu era uma espécie de guia turístico e tinha bolsa no mestrado. Depois na Cobal. Eu estava fazendo faculdade de Psicologia e você era monge no Instituto da Verdade Universal. No próximo encontro você era cantor num musical. Eu tinha virado funcionária pública para sempre. Agora você é compositor e eu sou fotógrafa. E continuamos amigos.

O filme Doces Bárbaros me trouxe muitas saudades. Das transgressões sadias de antigamente. Do cabelão da Gal que eu também tinha e dos mil colares. Da esperança que o mundo acalentava apesar de todos os infortúnios que a raça humana produz para si mesma. O mundo era jovem, era isso. Hoje a Aldeia Global é uma velha idosa que não amadurece. Não aprendemos nada que verdadeiramente importe, foi isso. A globalização, os celulares, a interdição do cigarro, a eterna juventude das cirurgias plásticas, os avanços da medicina, as academias de musculação proliferadas, as novas e moderníssimas formas de guerra, o inchaço das cidades, os mitos pré-fabricados são o ganho oco de uma espécie que hoje acha que ser moderno é fazer muitas coisas ao mesmo tempo e cada vez mais rápido.
De nada valem a avalanche de e-mails sem conteúdo e o turbilhão de notícias chapadas, se o rosto do mundo é amargo como um telejornal-colagem. Nenhuma informação seria desperdício se o bem-estar dos seres humanos fosse uma meta e não um privilégio.
Transgrediria, se não vivêssemos um avacalhado vale-tudo. Se a rebeldia não fosse produto. Não são os vinte anos que eu tinha o alvo do meu ilegível lamento. É a inutilidade dos grandes gestos e a invisibilidade da decência o que me angustia. Ninguém noticia, ninguém mostra a cara daqueles que não se corrompem e que permanecem num solitário anonimato. O que interessa aos meios de comunicação é o que apodrece. Os grandes gênios são contratados e domesticados, comestíveis e datados. A essência se perde entre máscaras e palavras adequadas ao bom senso, que, aliás, detesto.
O medo tomou conta dos aparvalhados. A aventura é vendida em pacotes pagos com prestações mínimas a perder de vista. É claro que o Banco sempre vence emprestando sanguessugas.
A única garantia é morrer um dia. Mas os tolos teimam em viver a vida como se ela fosse uma carta promissória. A culpa persegue os fracos, os mortos-vivos, clones dos cloninhos. A possibilidade de ser diferente assusta os medíocres. Homens grisalhos usam bonés terríveis, bermudas americanóides e meias soquete enquanto as mulheres disfarçam a agonia dentro das burcas do pretinho básico. Nem flor no cabelo pode mais.

Vivo em paz, como se não houvesse amanhã. É marca da minha geração. Não o medo da morte e outros entraves, como hoje sucede, mas uma certeza de que se a vida está agora aqui um dia inevitável não estará mais. Vivo em paz em parte porque nunca fui de fazer planos. As certezas me salvaram, os planos me fizeram e a vida foi, como numa novela redundante, transcorrendo. Paguei o preço de viver à deriva, em cash.

TESÃO SEM BÚSSOLA

Vida diária, chateações brincam de roda: bateria do carro arriada, vazamento nos banheiros. Se pudesse ainda, teria mais filhos, faria mais planos. Penso que é terça e é quarta e quase perco a aula. Confesso que nasci sem bússola e passo direto. Erro o caminho e me desoriento. Preciso de um Norte, de um coração forte, um espírito lúdico.

Meu coração é meu guia. Como tua cicerone, eu atuaria. “Nesse universo tão misterioso e assustador”, você disse. Nesse escuro eu não me perco. Mergulho em imagens e poesias sem medo. Não sei onde vou. Ou sei e é segredo. Sei que a vida é etérea, o tempo é o rápido do cabelo curto. Um dia de barba feita. Uma bolha de riso. Um curta, um voo, um show. Se houvesse mais tempo. Mas você é comprometido e eu sou aérea.

E a vida segue assim: empurrando-nos delicadamente, tão delicadamente que pensamos ter domínio sobre nossos trajetos.
Não temos. Eles se fazem sozinhos. Somos prisioneiros de nossas limitações. Privados de escolha. Levo na lembrança o que cabe na mala boa, o que é leve, o que foi bom momento. Deleto na fogueira todo desgosto, deleto mensagens sem ler, bloqueio um remetente sem me envolver. Levo afetos, nenhum desafeto, algumas indiferenças. Esta é apenas mais uma bifurcação do ardiloso labirinto que é a vida humana.

Agora há uma casa que me espera com rede na varanda, jardim e mar pertinho. Lá sou outra, livre. Índia, criança, Eva. Lá não envelheço. A semana vai ser cheia. Mandei embora a velha amargura.

FARINHA DE SONHOS
Caminhos se estreitam. Os poemas ficam mais jovens que eu. Morro, e os versos sobrevivem nos sebos, nos blogs, nos sites, nos sítios. Conto que sofro, e que é por uma razão microscópica: o mundo não foi feito para seres humanos.

NAMORARIA? CHORAVA?
Com o vácuo, não brinco. O fogo é fátuo, é fato, não corro, corro perigo, brinco de esconde-esconde. Ah, você é muito difícil. Ninguém disca, ninguém tecla, releio mensagens de um mês atrás feito cartas marcadas de baralho velhas, alguém pode sair machucado? Há perigo? É um jogo? Em sensações me afogo, que sufoco, a realidade fora de foco, o coração assustadíssimo não se intimidaria. Há riscos? Arrisco? Ainda arrisco? Namoraria? Chorava? Ou levaria tudo na flauta, inclusive o internauta?

PERSIGO OS DESEJOS, EVITANDO-OS
Me avisaram, sim: que a fantasia desqualifica a vida. Por isso eu te queria imperfeito, porque às vezes amei de um sentimento próprio, outras tive que inventá-lo, pertenço a mim, persigo os desejos, evitando-os.

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