LÁGRIMAS USADAS
Quase nunca doi mas quando doi doi demais. E vem pela via do
sonho, me fisgar mais um pouco, aquela dor lá de longe que eu pensava em
farelos no triturador automático de lembranças moídas, bicho este que se
alimenta de memória viva, mas sobram nacos inteiros, de sofrimento tão velho
que eu pensava enterrado. Nem o tempo, nem os últimos acontecimentos, nem o
esquecimento, nem o instinto de proteger-me, evitaram que o trauma
antiquário pulasse um salto em minha mente e me arrancasse lágrimas usadas,
dormindo, tão grossas quanto antigamente.
Você atravessou a minha vida e atravessado ficou impedindo que eu
vivesse outras histórias. O tempo já nem passa, instalou-se. Se eu for pro
inferno estarás lá fumando cachimbo. Se eu for pro céu terás asas. Desisti de
livrar-me do que parecia um encosto. Domingo estava tão cansada que
encontrar-te foi um bálsamo e todas as
tuas perversões soaram inofensivas como criança brincando de médico
debaixo da mesa escondido.
Fora isso, tenho meu séquito, faço as minhas brincadeiras. Os
anos passam e a gente vai voltando a ser menina inconsequente. Muitas
perdas, poucos danos. E o que temos de ruim já nascemos com o defeito ou
instalou-se muito cedo, nos primeiros traumas. Agora calma. Aos quinze e aos
cinquenta não se tem muitos planos. Só queremos uma coisa, obsessivamente: abarcar
o mundo inteiro.
Cada história é única. Se o que vivi compõe o que sou, o que
viverei pode me transformar, estamos combinados. Não fui mumificada, tenho
certeza absoluta que estou viva, um súbito e longo e inesperado beijo
encaixado vira o mundo dos sentidos de cabeça para baixo.
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