Finita como flores

23 de fev. de 2014

LÁGRIMAS USADAS

LÁGRIMAS USADAS

Quase nunca doi mas quando doi doi demais. E vem pela via do sonho, me fisgar mais um pouco, aquela dor lá de longe que eu pensava em farelos no triturador automático de lembranças moídas, bicho este que se alimenta de memória viva, mas sobram nacos inteiros, de sofrimento tão velho que eu pensava enterrado. Nem o tempo, nem os últimos acontecimentos, nem o esquecimento, nem o instinto de proteger-me, evitaram que o trauma antiquário pulasse um salto em minha mente e me arrancasse lágrimas usadas, dormindo, tão grossas quanto antigamente.
Você atravessou a minha vida e atravessado ficou impedindo que eu vivesse outras histórias. O tempo já nem passa, instalou-se. Se eu for pro inferno estarás lá fumando cachimbo. Se eu for pro céu terás asas. Desisti de livrar-me do que parecia um encosto. Domingo estava tão cansada que encontrar-te foi um bálsamo e todas as tuas perversões soaram inofensivas como criança brincando de médico debaixo da mesa escondido.
Fora isso, tenho meu séquito, faço as minhas brincadeiras. Os anos passam e a gente vai voltando a ser menina inconsequente. Muitas perdas, poucos danos. E o que temos de ruim já nascemos com o defeito ou instalou-se muito cedo, nos primeiros traumas. Agora calma. Aos quinze e aos cinquenta não se tem muitos planos. Só queremos uma coisa, obsessivamente: abarcar o mundo inteiro.
Cada história é única. Se o que vivi compõe o que sou, o que viverei pode me transformar, estamos combinados. Não fui mumificada, tenho certeza absoluta que estou viva, um súbito e longo e inesperado beijo encaixado vira o mundo dos sentidos de cabeça para baixo.

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