Minha África de panos coloridos, onde a morte se instala e a mídia não fala, onde perco meu negro todo dia, em absurdas estradas que te levam e te trazem como um pensamento, dor, unguento, e a cobiça de todas as raças te abandonam à mingua fingindo placebos, e crianças que se perdem das mães como perdi a minha, e doenças que te matam para desocupar-te deixando simplesmente que morras jogando fingidos remédios despencados em tua cabeça, de aviões que despejam a culpa em pacotes de alimentos, a imprensa tirando retratos encomendados para os olhos cegos do mundo, que globalizado desmama teus filhos espalhados pelo planeta num silêncio estrondoso que ofusca mesmo os batuques mais alegres, esvaindo-se escarlate na beleza de teus ritos.
Minha África suicida, barco à deriva cortado o cordão umbilical que ligava o navio ao bote, ninguém olha para trás, ninguém berra tua morte, nenhum século grita de dor enquanto planejam um continente desabitado em meio a partos de esquálidos bebês sem direito à vida, terra mãe querida, amordaçada num mar de dialetos, tua música não alcança a lógica dos mercados, teus rituais se infiltram recortados, sincréticos, adaptados, enquanto fingimos levar-te conosco, mas a verdade é que teus rebentos se arrebentam todos os dias em lenta agonia merecendo notas pequenas na imprensa, empresas de urubus voam nos teus céus vermelhos de sangue centenário. Escravizados foram meus irmãos de pele de chocolate, noite, mate, escuridão no corpo e no ignorado calvário, pátrias assassinas, óbitos sem atestados porque médico nenhum assina, negra, contaminada e menina, teu povo miscigenado pelo globo inteiro, tradição de cativeiro, assombrada, assombro de tribos que tu mesma exterminas, costumeira carnificina.
Minha África cinematográfica, berço do homem, onde as ancas gingam, onde os ombros soltos dançam a sensualíssima dança dos deuses, das colheitas, das lutas, caças, dos banhos de rio, dos Orixás vaidosos, guerreiros, mãos espalmadas, pés livres de calçados, matreira, guerreira, pulsando ritmos de tambores, capoeira, uma nação inteira, tão repartida, pátria sofrida, de onde veio nossa comida, nossa tradição brasileira, ora, no carnaval ninguém dança o fado, herdamos a ligeireza de pés calejados, o molejo, não a saudade do Tejo, minha saudade chora quando escuto teus toques, porque te esquartejam enquanto sou partida, e o mar que me aparece em sonhos é sempre a água da despedida, dos quatro horizontes, a salgada água que separou inteira a nossa grande família.
África ensolarada, que me faz duplamente órfã, mil vezes impotente, sonhando com um crepúsculo ardente, com um canto de cisne negro, como um doente que agoniza e ninguém se horroriza, porque somos todos uns desmamados, ignorantes e desabitados, vivendo à margem dos fatos, e já estamos meio mortos, quase enterrados.
África grávida, o planeta azul não é redondo e te ignora. Tua prole desconhece a própria origem e à toa chora. Sente uma dor sem nome. Sente um amor sem nome. Pensa que vive e todo dia morre. Fisgadas no umbigo, e a sensação incurável de não-pertencimento. Como se fosse a vida sem nascimento. Perdemos a mágica. Morreremos todos engolindo sapos, como filhos ingratos.
África de matricidas, de herdeiros aculturados, de riquezas ensolaradas, terras virgens, morte espalhada, lá, do outro lado do horizonte onde os gritos não alcançam, onde as notícias se escondem e os horrores secretos não são temas constantes porque o assunto da realidade pré-fabricada do jornalismo te exclui como uma chaga.
Por isso choro, por isso nunca estou inteira, sinto-me repartida, nunca repatriada, estou sempre em falta, sempre em coma, sempre ouvindo batuques na Lapa e sentindo-me estrangeira, solitária. Lembranças em sonhos do tempo em que fui escrava, do tempo em que fui rainha. Com roupas coloridas e adereços danço e enfeito minha prole. Há marcas no meu corpo e tons na minha pele. A água fria e límpida do mar que nos separa salga-me a ferida e aplaca a minha febre.
África, sonho contigo como berço, como prole falsamente alourada, como criança secretamente adotada, como fruto e como filha, como lago e como ilha, como o todo de que um dia fui parte.
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