Finita como flores

23 de fev. de 2014

FINITA COMO FLORES


Esperava um futuro e não era esse. Não era a juventude que nos tornava risonhos, alegres, ironicamente revolucionários, sem teses, praticando a liberdade feito loucos que se encontram no fundo de um sonho.

O tempo vai passando feito flecha e a gente continua querendo transgredir, acreditar, viver paixões imensas, por pessoas, por ideias, por autores, por quadros, por cantos, por músicas, paisagens, loucamente apaixonados por estados de espírito e, pasmem, grisalhos, levando no fundo da mochila datada as asas do voo que não nos abandonou porque a passagem de um tempo não foi a passagem de um túnel, mas uma sequência de dias enfileirados num mundo que me estranha, desconfio dele, é certo, mas continuamos rindo como crianças, e esperando o futuro com tantos planos que penso em escondê-los dos bocós que nunca dançam sozinhos, nem viajam sem medo, nem tecem mirabolantes planos para um futuro sem nome, um pouco de loucura nos torna mais civilizados, conseguimos ver a insensatez e a inutilidade das convenções que nos cercam, tão loucas quanto as que nos cercavam quando tínhamos vinte anos, casacos marrons e cabelos ao vento.
O mundo continua perverso e doido e nós continuamos sonhando e rindo, porque não há de ser nenhuma regra dessa sociedade doentia que vai nortear nossos caminhos de serpente.
Somos poetas, artistas, doces subversões, quem sabe ainda aprenderemos a tocar violão, a falar espanhol, a dançar tango, e levar a vida na flauta comendo estrelas.

Quero ser com sou para o resto da vida. E encontrar a morte completamente nua, treinando um passo novo, para que Ela nunca me reconheça, nunca me identifique, e me leve bem leve e me abandone exatamente onde acaba o universo finito, garantindo que eu não nasça nunca mais, que eu não reencarne nunca mais, que essa carne seja minha última morada e depois de morta eu me transforme num riso aberto no mundo das ideias.
Lá, onde existe um cavalo alado à minha direita enquanto pensamento. Encontre-me lá, meu velho amor novo e perdido, e lá não haverá fidelidade nem juramentos, culpas nem perigo de contágio, mentiras ou exageros, sequer arrependimentos. Seremos desdobramentos, replicados, e poderemos viver várias vidas, e todas as mesmo tempo, sem precisar fazer de conta nem fugir do desejo que às vezes nos assalta, mão leve. O amor não será uma ameaça, a solidão não será um perigo. Fica comigo enquanto passa a chuva. Porque eu nunca mais terei teu cheiro em minhas mãos. Nunca retrocederemos no tempo. Nunca lançaremos mão de recursos de encontro. Fica comigo enquanto o sol se esconde, porque não sei quem és, não sabes quem sou nem eu, e até mesmo nossa existência é duvidosa, transcorre sem deixar pistas. Que espanem o pó no qual nos transformaremos. Pó de estrelas, transformando em gargalhadas tormentos. Que eu não pense em ti, não há um só momento. O futuro está chegando a cavalo. Ele é veloz e nos petrifica. Eu te perdi de vista.
Mas as palavras jorram como água de fonte sem que eu lhes conceda um sentido. Pegue-as, não desperdice o séquito, lance-as ao vento do esquecimento porque sou finita como flores e nunca serei tua. Guarde seu desejo em segredo numa água forte e pinte um quadro realista. Ele será verdadeiro, atravessará os próximos séculos e viverá para sempre, pois a cada ano que passa aperfeiçoam-se as técnicas de restauro.

Sou de uma geração que acreditava ser possível e provável mudar o mundo porque raios não davam câncer e fumar era chique. Meu tempo tinha cachos nos cabelos, noites sem perigo, riscos sem medo. Sexo não era veneno. O mundo não era pequeno. Plutão era planeta e regia meu signo. Hoje estou desgovernada. Compro remédios de paz. Te esqueci completamente e não sangro mais.
Sou outra e preciso saber como esta criatura se veste, como ama, como reage, como é tratada. Passei a gostar de Mineirinho. É isso. Tenho essas pistas. No mais, redescobrindo.

PERDI A MOÇA QUE ME HABITAVA



A pessoa que veio limpar a casa quebrou o espelho e nunca mais olhei-me por inteiro. Nunca mais esperei que ele telefonasse. Nunca mais quis abraçar o mundo. Há moças que nascem calmas. Eu quis comer o universo lambendo os dedos, e por isso a maturidade me soa estranha como uma música ao vivo sem ar e sem vento.
Leio-me e parece até que fiquei velha, é mentira. Ontem mesmo usei gargantilha de sementes grossas feitas na aldeia indígena e alisei os cabelos cortados retos, ficando com cara de Cleópatra. Pintei as unhas de vermelho e saí, ombros de fora.
Sou uma criatura ingrata. A vida me abre a palma da mão repleta de frutos para colher com parcimônia, mas eu me deixo influenciar pelos anúncios de juventude e invento que queria ficar congelada numa etapa da vida, e voltar para quando eu não tinha dinheiro para pagar as contas vencedoras e vivia fingindo que esperava o amor verdadeiro, ciente de que há coisas que não se colhe, se constroi, e outras para as quais não se tem vocação desde pequena.

Sonho que abro a porta e vejo minha mãe com minha filha. É disso que tenho saudades. De estar no meio, entre a proteção e o futuro.


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