Esperava um futuro e não era esse. Não era a juventude que nos
tornava risonhos, alegres, ironicamente revolucionários, sem teses, praticando
a liberdade feito loucos que se encontram no fundo de um sonho.
O tempo vai passando feito flecha e a gente continua querendo transgredir, acreditar, viver paixões
imensas, por pessoas, por ideias, por autores, por quadros, por cantos, por
músicas, paisagens, loucamente apaixonados por estados de espírito e, pasmem,
grisalhos, levando no fundo da mochila datada as asas do voo que não nos
abandonou porque a passagem de um tempo não foi a passagem de um túnel, mas uma
sequência de dias enfileirados num mundo que me estranha, desconfio dele, é
certo, mas continuamos rindo como crianças, e esperando o futuro com tantos
planos que penso em escondê-los dos bocós que nunca dançam sozinhos, nem viajam
sem medo, nem tecem mirabolantes planos para um futuro sem nome, um pouco de
loucura nos torna mais civilizados, conseguimos ver a insensatez e a
inutilidade das convenções que nos cercam, tão loucas quanto as que nos
cercavam quando tínhamos vinte anos, casacos marrons e cabelos ao vento.
O mundo continua perverso e doido e nós continuamos sonhando e
rindo, porque não há de ser nenhuma regra dessa sociedade doentia que vai
nortear nossos caminhos de serpente.
Somos poetas, artistas, doces subversões, quem sabe ainda
aprenderemos a tocar violão, a falar espanhol, a dançar tango, e levar a vida
na flauta comendo estrelas.
Quero ser com sou para o resto da vida. E encontrar a morte
completamente nua, treinando um passo novo, para que Ela nunca me reconheça,
nunca me identifique, e me leve bem leve e me abandone exatamente onde acaba o
universo finito, garantindo que eu não nasça nunca mais, que eu não
reencarne nunca mais, que essa carne seja minha última morada e depois de
morta eu me transforme num riso aberto no mundo das ideias.
Lá, onde existe um cavalo alado à minha direita enquanto
pensamento. Encontre-me lá, meu velho amor novo e perdido, e lá não haverá
fidelidade nem juramentos, culpas nem perigo de contágio, mentiras ou exageros,
sequer arrependimentos. Seremos desdobramentos, replicados, e poderemos viver
várias vidas, e todas as mesmo tempo, sem precisar fazer de conta nem fugir do
desejo que às vezes nos assalta, mão leve. O amor não será uma ameaça, a
solidão não será um perigo. Fica comigo enquanto passa a chuva. Porque eu
nunca mais terei teu cheiro em minhas mãos. Nunca retrocederemos no tempo.
Nunca lançaremos mão de recursos de encontro. Fica comigo enquanto o sol se
esconde, porque não sei quem és, não sabes quem sou nem eu, e até mesmo nossa
existência é duvidosa, transcorre sem deixar pistas. Que espanem o pó no
qual nos transformaremos. Pó de estrelas, transformando em gargalhadas
tormentos. Que eu não pense em ti, não há um só momento. O futuro está
chegando a cavalo. Ele é veloz e nos petrifica. Eu te perdi de vista.
Mas as palavras jorram como água de fonte sem
que eu lhes conceda um sentido. Pegue-as, não desperdice o séquito, lance-as ao
vento do esquecimento porque sou finita como flores e nunca serei tua. Guarde seu desejo em segredo numa água
forte e pinte um quadro realista. Ele será verdadeiro, atravessará os
próximos séculos e viverá para sempre, pois a cada ano que passa aperfeiçoam-se
as técnicas de restauro.
Sou de uma geração que acreditava ser possível e provável mudar o
mundo porque raios não davam câncer e fumar era chique. Meu tempo tinha
cachos nos cabelos, noites sem perigo, riscos sem medo. Sexo não era veneno. O
mundo não era pequeno. Plutão era planeta e regia meu signo. Hoje estou
desgovernada. Compro remédios de paz. Te esqueci completamente e não
sangro mais.
Sou outra e preciso saber como esta criatura se veste, como ama,
como reage, como é tratada. Passei a gostar de Mineirinho. É isso. Tenho essas
pistas. No mais, redescobrindo.
PERDI A MOÇA QUE ME HABITAVA
A pessoa que veio limpar a casa quebrou
o espelho e nunca mais olhei-me por inteiro. Nunca mais esperei que ele
telefonasse. Nunca mais quis abraçar o mundo. Há moças que nascem calmas. Eu
quis comer o universo lambendo os dedos, e por isso a maturidade me soa
estranha como uma música ao vivo sem ar e sem vento.
Leio-me e parece até que fiquei velha, é mentira. Ontem mesmo usei gargantilha de sementes grossas feitas na aldeia
indígena e alisei os cabelos cortados retos, ficando com cara de Cleópatra.
Pintei as unhas de vermelho e saí, ombros de fora.
Sou uma criatura ingrata. A vida me abre a palma da mão repleta de
frutos para colher com parcimônia, mas eu me deixo influenciar pelos anúncios
de juventude e invento que queria ficar congelada numa etapa da vida, e voltar
para quando eu não tinha dinheiro para pagar as contas vencedoras e vivia
fingindo que esperava o amor verdadeiro, ciente de que há coisas que não se
colhe, se constroi, e outras para as quais não se tem vocação desde pequena.
Sonho que abro a porta e vejo minha mãe com minha filha. É
disso que tenho saudades. De estar no meio, entre a proteção e o futuro.
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