Finita como flores

23 de fev. de 2014

DESCULPE O EXCESSO DE SINCERIDADE


Você mandou um e-mail pra ela dizendo que sua chegada foi a coisa mais importante que aconteceu na tua vida. E que a segunda mais importante foi sua saída. Em mil novecentos e setenta e nove, é isso que torna a mensagem descabida. Minha amiga fez igualzinho a você. No meio da noite, mandou uma mensagem para um ex-namorado que não vê há quinze anos dizendo que ele foi a melhor trepada até agora. Ele bloqueou seu remetente.
Arrependida, e senhora, deixou mensagem eletrônica cifrada pedindo desculpas. Ele está casado, calvo, com três filhos, gordo, morando na Bahia, recuperando-se de um câncer e do uso abusivo de drogas.
Vai ver nem se lembra mais que um dia trepou tanto. Vai ver ficou com medo que quisesse relembrar loucuras afogadas na turva memória. É preciso controlar o excesso de espontaneidade. Traz mal-entendidos, quebra encantos. Pessoas gostam de amenidades.
Vamos tentar nos ver, sim, embora não sejamos encontros marcados. Às vezes a gente se esbarra e nunca estamos iguais.  Nos conhecemos num festival de teatro em Recife. Você era ator, eu escrevia poemas escondido e nem tinha vinte anos. Nos reencontramos quando você formou-se em Psicologia e atendia num consultório. Eu era atriz de uma peça em cartaz. Anos depois você estava executivo e eu professora de tecelagem manual. Fomos jantar. Você pagou a conta e usava terno bem passado.
No ônibus, você vestia bermudas de tarde num dia de semana. Ensinava italiano. Eu era uma espécie de guia turístico e tinha bolsa no mestrado. Depois na Cobal. Eu estava fazendo faculdade de Psicologia e você era monge no Instituto da Verdade Universal. No próximo encontro você era cantor num musical. Eu tinha virado funcionária pública para sempre. Agora você é compositor e eu sou fotógrafa. E continuamos amigos.

O filme Doces Bárbaros me trouxe muitas saudades. Das transgressões sadias de antigamente. Do cabelão da Gal que eu também tinha e dos mil colares. Da esperança que o mundo acalentava apesar de todos os infortúnios que a raça humana produz para si mesma. O mundo era jovem, era isso. Hoje a Aldeia Global é uma velha idosa que não amadurece. Não aprendemos nada que verdadeiramente importe, foi isso. A globalização, os celulares, a interdição do cigarro, a eterna juventude das cirurgias plásticas, os avanços da medicina, as academias de musculação proliferadas, as novas e moderníssimas formas de guerra, o inchaço das cidades, os mitos pré-fabricados são o ganho oco de uma espécie que hoje acha que ser moderno é fazer muitas coisas ao mesmo tempo e cada vez mais rápido.
De nada valem a avalanche de e-mails sem conteúdo e o turbilhão de notícias chapadas, se o rosto do mundo é amargo como um telejornal-colagem. Nenhuma informação seria desperdício se o bem-estar dos seres humanos fosse uma meta e não um privilégio.
Transgrediria, se não vivêssemos um avacalhado vale-tudo. Se a rebeldia não fosse produto. Não são os vinte anos que eu tinha o alvo do meu ilegível lamento. É a inutilidade dos grandes gestos e a invisibilidade da decência o que me angustia. Ninguém noticia, ninguém mostra a cara daqueles que não se corrompem e que permanecem num solitário anonimato. O que interessa aos meios de comunicação é o que apodrece. Os grandes gênios são contratados e domesticados, comestíveis e datados. A essência se perde entre máscaras e palavras adequadas ao bom senso, que, aliás, detesto.
O medo tomou conta dos aparvalhados. A aventura é vendida em pacotes pagos com prestações mínimas a perder de vista. É claro que o Banco sempre vence emprestando sanguessugas.
A única garantia é morrer um dia. Mas os tolos teimam em viver a vida como se ela fosse uma carta promissória. A culpa persegue os fracos, os mortos-vivos, clones dos cloninhos. A possibilidade de ser diferente assusta os medíocres. Homens grisalhos usam bonés terríveis, bermudas americanóides e meias soquete enquanto as mulheres disfarçam a agonia dentro das burcas do pretinho básico. Nem flor no cabelo pode mais


Vivo em paz, como se não houvesse amanhã. É marca da minha geração. Não o medo da morte e outros entraves, como hoje sucede, mas uma certeza de que se a vida está agora aqui um dia inevitável não estará mais. Vivo em paz em parte porque nunca fui de fazer planos. As certezas me salvaram, os planos me fizeram e a vida foi, como numa novela redundante, transcorrendo. Paguei o preço de viver à deriva, em cash

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