Finita como flores

18 de jul. de 2010

O bairro da Glória

A cidade tem muitos cantos. Por isso posso olhar seriamente o mar de longe e sofrer porque a vida não é longa e temos que carregá-la conosco como uma mala de casco de tartaruga. Por isso posso experimentá-la, tendo-a esquecido. E apontar o Museu de Arte Contemporânea, tão pequenino do outro lado, como quem mostrava os micos da Lagoa pras visitas. Mudar de endereço é rever faces que tivemos, reconhecer, estranhar, às vezes sequer identificar. É ver surgir num retrato de infância o nosso olhar eterno, uma essência que já nasceu conosco e que permaneceu, com suas belezas e imperfeições, apesar das cores de cabelos que tivemos, dos corpos que habitamos e que se transformam diariamente, apesar dos penteados estranhos, dos amigos perdidos, dos amores que morreram para sempre, dos que não morrerão jamais, dos mortos, dos feridos, dos convalescidos e ver surgir o nosso olhar eterno como num espelho: essa sempre serei eu.

Em Búzios comprei uma biruta que pendurei no alto da casa do Alto Glória, na esperança de que um helicóptero extravagante jogue um puçá e mude minha vida. Somos duas em casa agora.

Vontade de voltar pra casa porque há um canto que me espera impregnado de referências e enfeites. É pequeno. Lá, meus pertences não cabem, livro-me do desnecessário, amplio seu conceito, obrigo os objetos escolhidos a fazerem contorcionismo e me conformo: morando sozinha no Rio definitivamente não necessito de três cobertores.

Vi papagaios rondando a minha nova casa no alto e ouvi o assobio dos saguis sem vê-los. Bem-te-vis gagos comentavam entre si seus nomes. Bem no miolo do Rio de Janeiro. Talvez em breve eu possa desempacotar-me. Morte simbólica, sumiram de vista meus objetos, meus caminhos de ida e volta. Desgovernei-me na primavera. Mas a cidade é mágica por isso, porque não perdeu a inocência selvagem dos bichos. E andando meia hora ou menos estou no Centro. Cinelândia é nossa praça europeia e nosso depósito de meninos. Cine Odeon marcando os bons tempos. Por baixo da terra os trens nos levam pra Glória. Uma estação nos separa.

O Aterro do Flamengo era meu cineminha diário pra ir pro trabalho que não me cansava de admirar do ônibus. Cinquenta minutos da porta de casa à porta do trabalho se transformaram em quinze. Agora virei mulher subterrânea sobre trilhos, que se vê refletida na janela escura. Quando o locutor em off avisa: Próxima estação, Glória! tenho a confiante tranquilidade que passar do ponto distraída é coisa do passado. Ouço meu nome e entendo: minha estação chegou.

Quando fui morar no bairro da Glória, sentia-me homenageada porque a papelaria, o caminhão da transportadora, a cooperativa de táxi, a pensão, o hotel, o teatro, o outeiro, tudo se chama, como eu, Glória. Até o Pet Shop é Bicharada da Glória. Tem rua com placa: Acesso à rua da Glória. Eu era a própria Joana Angélica, viva, passeando pelo calçadão. Um mês depois, estou saturada. Lá, eu me sinto como se perguntassem meu nome, e eu dissesse:
- Ipanema. Meu nome é Ipanema.

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