Finita como flores

18 de jul. de 2010

Mudança

As janelas da cidade são labirintos de espelho misturando favelas, verdes vistas cariocas e infinitos ângulos do Corcovado onipresente. Lá vamos nós, procurando apartamentos. Como peixes perdidos de um cardume, como cupins que devoram o cimento da cidade. Rastreamos, confiantes que há algo e que nos espera. Pássaros migram e voltam seguindo as oscilações do tempo, o pulsar das quatro estações. Nós vamos e voltamos seguindo a maré das circunstâncias, fugindo do oscilar das bolsas de valores, dos planos mirabolantes dos governos e porque somos sensatos, tentamos transformar a estranheza em aventura. Ladeiras, favelas, barulhos, escadas, lonjuras, bailes funks balançam os preços. Vista, metragem, praia, comércio, segurança, silêncio. Combinamos nossos ingredientes de acordo com o dinheiro. O alcance da bala perdida. O alcance da conta bancária. Onde baterá o sol? Serão ruidosos e briguentos os vizinhos? Tem vista pra favela, pra Baía, pro Cristo, pro verde, pro tiroteio? Esticamos bastante o pescoço e temos tudo: a favela, a baía, o verde, o Cristo e o tiroteio. Quero a vista panorâmica, o parque, a piscina e a praia. Quero ver Cristo. De longe, estou nova ainda.

A praia de Ipanema hoje pareceu-me estranha. Ameaçada pela possibilidade de não mais ser minha. Distanciava-se de mim, enquanto temia perdê-la. Dei-me conta, então, de que há dois anos não é mais a mesma. Lá, já não encontro amigos. A água hoje turva em nada lembra Ipanema dos bons tempos do Posto 9. Temendo não tê-la, constatei que há muito ela já não me pertencia. E voltei para casa sem cumprimentar amigos. Como um estrangeiro de visita numa praia estranha.

Como um rio sem berço, fonte sem nascente, voltei para o bairro que hoje me abriga, que leva meu nome sem conhecer-me e no qual transito reparando para familiarizar-me. Se eu tiver que deixar o Rio de Janeiro, ou se aqui ficar, refaço meus laços. Hoje, a cidade não me acolhe. Hoje, alimentam-me as lembranças. Os hábitos mudaram. Estive alheia. Saí do coma. Onde estou, então, se aqui não é minha cidade? Investigo os cantos que me abrigariam, pra descobrir novos recantos, fazer novos amigos, cultivar os antigos como rosas, como vinhos. Renascer madura, rio novo que irrompe do escuro da terra para o solo fronteiriço. Perdi Ipanema hoje, como na infância perdi a Praça Malvino Reis, meu pai e o Minas Tênis Clube.

O Rio de Janeiro é uma cidade variada. E eu quero morar perto de alguma ciclovia. Nossos trajetos diários ganham lupas. Temos novos olhos. Lentes que captam pormenores, vilas bifurcadas inusitadas esquinas. Os Classificados são o bisturi. Com ele traço um longo corte na barriga da cidade.

As janelas da cidade são labirintos de espelhos. Meu mapa. Exijo um mapa impresso que me oriente. Exijo anjos que me sinalizem, sonhos que me estimulem, dias ensolarados, luzes brilhantes que me iluminem a Metáfora. Exijo uma Estrela-Guia que me dê boas dicas.

Quantos cacos de vidro refletem a caleidoscópica cidade, inúmeros olhos para mirá-la, admirá-la ou lamentar-lhe a sorte, pobre naco de terra abandonada pelo Poder Público e abençoada pelos Deuses que perdem forças com o passar dos anos, com a sequência predadora dos governos.

Projetar a vida pra frente remando contra as lembranças, querendo trazê-las comigo como um rebocador, guardando-as dentro de mim como um tesouro, tentando desvencilhar-me, cultivando-as, aparando-lhes as arestas, editando nossa história, mergulhando de cabeça no passado, arriscando-me a bater com a cabeça no fundo porque o passado era raso, olhando pra frente como se olha pela janela da casa da alma e vê vida chamando, caminhos, hasteando esperanças enquanto dói a dor de perder Madinha, enquanto procuro casa nova sem vontade de ir embora desse ninho verde que habito. O amanhã me convida, me espera, enquanto meus pais dançam eternamente na fotografia, alegres na sala da casa grande da infância onde não voltarei jamais, à casa que habita em mim como um órgão vital.

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