A cidade se contorce para que a poesia continue a mirá-la. Perdi meus micos, minha pedra gigante, meus bem-te-vis, tão gagos, minhas andorinhas e morcegos disputando o voo rasante da água e desaparecendo nos buracos do muro alto como quem atravessa paredes. Perdi a respiração da mata, a orquestra de ruídos indecifráveis e inseparáveis que se alternam conforme as estações do ano, o pulsar dos ventos naquelas folhas, a lua que eu olhava rápido, as cigarras desesperadas agonizando seu canto de morte e veraneio. Empacoto-me e mudo, tentando ser leve e básica, e vejo Niterói do último terraço. Poucas malas, carrego no olhar a poesia que me ressuscita. Mudar de endereço é remexer nas entranhas da nossa morada, perder caminhos, ganhar ruas novas, surpreendentes trajetos, inusitadas descobertas, é andar de olhos bem abertos para o inesperado e esperá-lo. Espiar por novas janelas. Dar bom dia a novos vizinhos. E deixar pra trás. Acordar de manhã e, antes de abrir os olhos, estranhar: onde estou?
Procurar apartamento na cidade do Rio de Janeiro é tarefa para uma vida inteira. Diferentes linhas formam o desenho imaginário dos nossos curtos trajetos cotidianos. Aprendo mais da cidade, transitando. Às vezes me desoriento. Feito uma formiga que segue um rumo introjetado, traço no mapa do Rio novas perspectivas. Maritacas, pombos porcos, árvores tortas do Aterro. Passeios de descobrimentos. Convalesço familiarizando-me.
Quero ser como um caramujo que carrega a casa nas costas, livre das arquiteturas, belas tábuas corridas, lindas divisórias, cores fortes nas paredes, flores enormes artificiais no hall dos elevadores. Resistimos. Resistimos às mudanças, mesmos às boas, porque somos pequeninos nos nossos noventa metros quadrados, uns em cima dos outros como cemitério de gavetas.
PASMACEIRA É REQUISITO
A pasmaceira é requisito para os remendos de agora. Trata-se de um retiro. Trata-se de um tempo. De uma desconstrução. Juro que não vou passar o resto da minha vida assim, disciplinadamente séria e econômica. Um dia os portões se abrirão e eu ainda estarei inteira. E poderei voltar à vida, retomando à força toda a magia que voa livre, quase invisível, mas que é de quem pegar. Tendo um chão para pisar, voarei livre levemente louca. É uma questão de procedimentos.
ARRUMO OS ARMÁRIOS DA VIDA
É necessária a reclusão voluntária a que me submeto. Como um atleta na concentração, como um salão fechado para reformas, hoje quase me escondo. Paciente na estação, espero o trem da vida alegre passar de novo quando eu estiver pronta. Não deixarei que me cantem, sussurrados, os velhos motes. Não serei de novo o que fui, nem o que esperam que eu seja, de acordo. Acordarei rebelde, alegre gozadora, quando as longas obras terminarem. O que é bom é bom, guardo e cultivo. O que é ruim vai pro lixo. Gavetas, caixas, malas, porões, sótãos, envelopes, pastas, embrulhos, nada me escapa enquanto aguardo a reinvenção do mundo. Arrumo os armários da vida.
UM PILOTO AUTOMÁTICO CONDUZ MEUS DIAS
Um estranho piloto automático conduz meus dias, que são todos parecidíssimos e, por uma misteriosa razão, à qual não tenho nenhum acesso possível, sinto-me confortável. Acordo e funciono ritualisticamente. Num tempo que arranjo não sei como, procuro apartamento para alugar, mostro apartamento pra vender, escaneio e trato fotos para blogar. Não estou apática, estou vibrando. Sinto-me forte, alegre, bem-disposta, lúdica. Não me impressiono com essa sequência de vida clonada. O que me espanta é que funciono. Será que amadureci? Será que estou por fora? Será que me bloqueei? Será que me bloguei, que sou virtual agora? Será que um anjo me conduz? Ou será que nem tudo que reluz?
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