Se a cidade do Rio de Janeiro fosse uma moça seria linda e porca. Andaria em más companhias. Um assalto no meio da rua é invisível como mais um pombo emporcalhando a cidade. O Rio de Janeiro tem as praias, a Lagoa e a Baía imundas. Água servida. E o trânsito tão caótico quanto seria a cabeça da moça linda e porca.
DURMO SEM BATUQUES
O carnaval foi embora e levou a folia. Durmo sem batuques. Os transeuntes, os camelôs, os mendigos, os pedintes. Está tudo normal, agora. A diversão não é mais obrigatória. Tampouco a alegria. Posso enfim sentir-me nostálgica sem culpas. Se ao menos eu soubesse o que tanto se comemorava, talvez fosse levada pelo cordão umbilical da euforia. Latas recolhidas, amassadas, vendidas, recicladas. Estradas apinhadas de gente retornada para os seus respectivos lugares. A vida retoma seu curso. Basta matricular- me.
Vontade de arrancar a cabeça dessa corruptela safada que joga no esgoto de seus próprios bolsos a dinheirama sugada pela veia do nosso pescoço, mão leve que se enfia em nossas entranhas e arranca o suor, o tempo, a saúde, a roupa nova, o remédio, o cinema que não fomos, o bife que não comemos, o curso que não fizemos, a doença que não tratamos, e nos entopem de siglas, de boletas, de ralos por onde aumentam os serviços básicos e nos chupam as glândulas de canudinho.
LÁ NA PUTAQUEOPARIU TEM PRAIA?
Ele passou a semana em Sacramento de novo com os filhos “e a mãe”. Ele é casado e pensa que não é, então fica culpado porque no fundo sabe que é casado e pensa que não é católico mas é, no fundo acha errado o cara casado pular a cerca porque jurou ser fiel na alegria e na dureza mas não é. Mas talvez ele não saiba disso que eu sei porque penso que adivinho pensamento de homem.
Não consigo deixar de tentar adivinhar pensamento de homem!!!!!! É vício, cara, simplesmente não consigo! São mais de quarenta anos tentando adivinhar e achando que adivinhava. Dei o primeiro passo: não sei o que se passa na cabeça dos homens, digo a mim mesma ao levantar. Mas, se começo, é impossível parar, basta a primeira tentativa e todo um pensamento vai se encadeando em minha mente e não consigo parar de narrar o que vai na cabeça do cara. Sei lá o que o cara tá pensando!!! Eu sei lá! Vai ver que é mentira, que nem foi pra Sacramento coisa nenhuma, que foi pra Puta que o Pariu e não quer me contar. Lá na Putaqueopariu tem praia????
FIDELIDADE À TODA PROVA
Os morcegos enxergam no escuro. Os atobás são fiéis. Há pessoas que nascem com a voz previamente afinada. Há pessoas que vêm ao mundo despreparadas para, numa só vida, aprender Física Quântica. Outras, ainda pequeninas, somam de cabeça. Outras, compulsivas, são antecipadamente infiéis. Os pombos-correio sempre voltam, não importa a lonjura. Há pessoas que se perdem no bairro onde moram. A região do cérebro destinada à Geografia extraviou-se nas conexões nervosas e foi reciclada talvez para memorizar ritmos. Ouvi dizer que um bilíngue pode levar uma pancada num local muito do específico do crânio, sumindo de dentro da cabeça uma de suas línguas. Bem que mamãe me dizia: Glorinha, as pessoas não mudam.
AMOR HORMONAL
Uma preguiça atávica de continuar pela vida afora esperando telefonemas, adivinhando pensamentos, analisando comportamentos, seduzindo um seduzir sem fim. Uma leveza básica agora que formalizo em mim o encerramento dos trabalhos, neste momento em que isto é normal e digo adeus ao amor hormonal. A menina que já sofria pelo menino que naquele dia não apareceu no telhado para fingir que soltava pipa e espiá-la cumpre trinta anos de relacionamentos amorosos, dolorosos, divertidos, aborrecidos, parecidos uns com os outros como índios de uma mesma tribo endogâmica. Tudo é mistério. E tudo é simplório se vivemos a vida sem a encrenca do palavreado. A paciência, como sola de sapato, gasta, esgota-se e não duela. Morre naturalmente sem ter se perdido jamais. Viro a página e vivo em paz.
Mariana me disse que o remédio expulsou a depressão e a insônia, conforme o pedido, mas levou junto a libido. Criança jogada fora com a água do banho. Tantas perdas, algum ganho. No pacotão dos defeitos colaterais, seu coração é como uma casa destelhada, mas Mariana está contente, não quer conserto. Quer medicamento.
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