BALDES DE ESQUECIMENTO
A memória é uma película de cinema que o esquecimento faz questão de picotar enquanto o tempo esmaece, sobrepõe, perde as imagens nunca aleatoriamente mas por razões que a gente mesma desconhece. Fico com pequenas tiras e quando as localizo, identifico, reconstruo e conservo, são pérolas do colar da vida, riqueza que segue comigo montando o mosaico de que sou feita.
MANUAL DO BEM-ESTAR
É fácil ser feliz: pague suas contas em dia, não discuta, não perca a cabeça, durma e alimente-se bem, evite ficar preso em engarrafamentos, afaste-se de gente que te leva ao desespero, caminhe uma hora por dia, não fume, exercite corpo e mente, beba muita água, faça sexo regularmente e seja uma pessoa magra.
Se o salário acabar antes do mês, não perca a cabeça, emagreça, jejue.
Se o trânsito parar, não pare, aproveite para dar uma caminhada.
Se não consegue uma boa cama, contente-se em caminhar uma hora por dia, e seja uma pessoa mal comida e magra.
Se você é uma pessoa magra, dorme e alimenta-se bem, caminha uma hora por dia, trabalha em casa, bebe muita água, controla os gastos, não fuma, não bebe e faz sexo seguro com disciplinada regularidade, fuja, sua vida deve ser muito chata.
ANTES QUE OS PRAZERES SEJAM PÃES DE ONTEM
Porque tem vinte e um anos, ela quer agarrar a vida imediatamente, abocanhar o futuro como uma fruta madura, devorar o hoje como uma hóstia purificadora, e cometer todos os pecados depressa, pela experiência de saboreá-los, antes que seja tarde, antes que todos os prazeres sejam pães de ontem, antes que o passado engula este instante como fará com todos os outros E eu, porque tenho quarenta e nove, também quero.
PAIXÃO VIRTUAL
Última moda: paixão virtual. Sem temperaturas, calores, odores, tatos, olhos, olhares, gestos, toques. O outro inventado. Há casos. Eu, que sou do tempo da calça frouxa, tento adaptar-me.
Eu, que aprecio muitíssimo o realismo fantástico, tento conformar-me.
Hoje, mulher desesperada não clama, deleta.
Se o problema for um homem e merecer uma segunda chance, dá-se um boot, arma-se um bote. Navega-se.
Mas se ele comete um erro fatal, aí tem que fechar o programa legal.
VAI CONTINUAR A MORRER
Pernoito no hospital enquanto mamãe se prepara para morrer ao lado de outras pessoas que lutam para continuarem vivas. A fita mostra o momento exato em que saio à rua, é sábado, está um sol desesperado de verão passeando no céu azulíssimo. É como se eu estivesse me preparando para morrer também, um dia. Penso que neste exato momento pessoas fazem planos, viagens, compram carros, tiram passaporte, publicam livros, estreiam shows, apaixonam-se, trepam, gozam, dançam, ganham dinheiro, nascem até. Mas para mim a vida está parada. Voltarei à noite para acompanhar minha mãe, que vai continuar a morrer.
O Hospital do Câncer é o lugar mais triste do mundo.
Eu sei que o tempo vai passar, mamãe vai morrer, depois o luto vai clarear aos pouquinhos, pois a vida teima sempre em continuar. Eu sei que vou lacrar esses momentos tristes no baú dos assombramentos e que vou alcançar a carreta da vida lá na frente. É tudo uma questão de tempo.
Quero estudar. Quero escrever. Quero fazer milhões de coisas que não tenham preço, invendáveis, que nunca darão dinheiro, quero fazer fotografias em preto e branco e encher as paredes de uma casa no alto de 214 andares, onde quase ninguém vai. Quero aprender espanhol pra cantar no chuveiro.
EXPERIÊNCIAS MAL-SUCEDIDAS ENTUPIRAM O CORAÇÃO DE CLIHÊS
ARTE COM PAPEL E VENTO
Contra tudo e contra todos, saí da minúscula Zona Sul e fui à 28ª Delegacia, em Campinho, resgatar meu celular roubado. No caminho vi homens e meninos nos telhados, sem camisa, o céu vermelho de fim de tarde supremo fazendo palco pra eles soltarem pipas. Eram tantas, graciosas, coloridas. Soltar pipas é um esporte solitário, que exige mãos firmes, leveza, cabeça fresca, autocontrole. Uma arte que o homem faz com papel e vento. Embelezavam o crepúsculo. Não me refiro às pipas, mas aos meninos e aos homens.
O CARIOCA
O carioca tem uma qualidade, que de tão grande virou defeito. Não nega informação na rua. Faça o teste. Pergunte a um carioca onde fica a Rua Tal. Se ele souber, repare seu olhar de satisfação. Porém... se ele não souber a localização da Rua Tal, observe sua expressão de descontentamento. O carioca vai olhar arregalado em volta, fazer um esforço sobre-humano, cavucando a memória, aflito. E, se de todo não puder ajudar, vai dizer qualquer coisa, é capaz até de inventar que é pra lá. E não será por maldade. Simplesmente o carioca, quando abordado por alguém perguntando onde fica a tal lugar, não consegue responder simplesmente: - Desculpe, eu não sei.
A Antropologia explica mais que Freud. Esse comportamento atávico teve sua origem nos primeiros contatos entre tribos indígenas seminômades e estrangeiros perdidos na selva. Os índios eram tão alegres e geograficamente tão situados, e os estrangeiros tão desorientados e medrosos, que nada doía mais na alma ingênua de um silvícola do que encontrar aqueles branquelos peludos e magrelos suando e desidratando em suas botas, a poucas passadas de um riacho doce embutido na mata.
Naquela época nem precisava perguntar nem gesticular: água, água, água... Era só olhar pra cara suada e faminta do gringo perdido e assustado e apontar? Não. Os índios faziam questão de levá-lo até lá.
FOTOS RECÉM-NASCIDAS
Meraluz, tirei da incubadeira fotos recém-nascidas, ou há muito congeladas e paridas, que deixei numa cestinha na tua porta com um termo de adoção. Mate as feiosas como algumas tribos fazem com os bebês doentes. Delete-as rápido, antes que te apegues e percas a imparcialidade necessária para selecioná-las para o nosso site. Minhas filhas biológicas, entrego-as a ti, para que as insira na cultura. Seja rigorosa com elas. Eu, de tanto olhá-las, me envolvo, perco o critério. São diferentes das outras, as estátuas fotografadas por mim. Reconheço seus mínimos detalhes e a instabilidade de seus ângulos. Doem em mim suas partes quebradas, sujas, pintadas com cocô de pombo. Revejo-as nos meus trajetos diários, condoída com o abandono em que se encontram, e só fico tranquila porque sei que as encontrarei sempre, embora mortas, ali. Leve-as com cuidado, como tens feito, para o mundo virtual, onde ganham vida, recriadas por ti.
Meraluz, por que será que as estátuas têm pombos na cabeça? Como são esquartejados os bustos! A homenagem perde sua pompa e ridiculariza momentos imortalizáveis da História. Quando cresce o mato, chafarizes secos. Se jorram água abrigam bandos de mendigos, alcoólatras e gente que mora na rua e ali se banha, se ensaboa e lava roupa, como quem se sente em casa. Gosto de visitar as estátuas que fotografo, para ver como estão. Engana-se quem pensa que estão sempre iguaizinhas. Noite ou dia, sol ou chuva, desenhos de pinceladas de merda e um detalhe fundamental, que as torna sublimes, gozadas ou humanas: onde pousará o pombo?
O pombo humaniza a estátua. A estátua petrifica o pombo. Impossível separá-los. O pombo ridiculariza a estátua. A estátua dignifica o pombo.
Meraluz, quando chove, as estátuas ficam limpas: a nua da Candelária, a Imaculada, os dois homens a cavalo, o padre catequizando a menina, o tenente ferido.
Durante meses, fiquei obcecada pelo Monumento da Cinelândia. Emocionam-me suas cenas representando a dramaticidade das relações humanas. Gastei dinheiro, rolos e rolos de filme, irritei-me. Uma pessoa me sacaneou quando cheguei feliz com um envelope cheio de fotos fresquinhas, dizendo: E agora? São fotos de homens lindões, ou DE NOVO aquelas estátuas cheias de cocô?
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