O MUNDO É DE HADES
Morremos nós, simples mortais, ficam os nós, atemporais. Ficam as filhas, ilhas, em busca de um colo de mãe, fica a mãe-terra, e a que não mais germina, fica dentro de nós a menina. Morremos sós.
O escuro do mundo das trevas, para onde somos arrancados volta e meia: pesadelos, hospitais, loucuras temporárias, paixões imaginárias, viagens solitárias, delírios, um carro atolado na estrada de terra à noite, uma obsessão, um porre, um cartão de ponto, carnaval, coração que dispara instantes. Fora de órbita, fora do ar, fora de si. Amnésia. Gagueira súbita e fugaz, que paralisa a voz, sai de si, interrompe o pensamento lógico, lapsos, tonteiras, brancos, ausências, esquecimentos, desligamentos, mentiras aderentes, camas convalescentes, câimbras, comas, memória que turva, neblinas na curva, lembranças que falham, mãos que se atrapalham, pés que tropeçam, palavras que escapam, voz que treme, mãos que tremem, um degrau a mais na escada do metrô e caio de joelhos porque fui ler a filipeta da manicure com óculos para perto e o chão saiu de foco. E sonhos, sonos, sufocos, tudo pertence a Hades.
Quando me perco no escuro de mim mesma e combino com a realidade necessária que vou fingir aceitá-la, e que a terra é firme, o amor seguro, e que é justo pagar contas em dia, e que então tá.
Nós cíclicos. Deméter terra à vista, Melaine no deserto, a que não mais floresce enquanto o fruto cresce, e a primavera que insiste em nos dar flores de volta, sem cartões e sem lacinhos, e a moçoila seqüestrada por carruagens aladas vindas do interior do breu da terra, puxadas por cavalos cegos pela luz, e bago de romã sorrateiro, doce armadilha, feito sexo escondido.
O compromisso diário de voltar ao trabalho, à lucidez dos planos fictícios, a distração narcisística, a flor preta, a sedução do homem invisível que irrompe para sacar-me feito saldo.
Trazemos em nós os nós: todos os componentes dos entrelaçamentos, circunstâncias de todos os mitos, constelações de todos os tecidos, novelo de todas as tramas, situações, eventos. Perda, distração, desencontro, reencontro. A chama primaveril quando nos pensávamos mortos, o trato, o pacto, o descompromisso.
Deméter, quede seu rebento?
Hades, nem te conto. Arrebatou-me a escuridão por onde adentrei por meus próprios passos. Eu me perdi na trilha da pousada e, mulher da cidade, tropecei, sem rumo, atordoada pelos vaga-lumes alegóricos que acendiam o rabo e nada iluminavam, nunca os vi tão sem beleza e tão numerosos, a multidão de luzes mínimas que, pilhéria, em vez de me orientar, piscavam marotos onde eu menos esperava.
Ouvi o mijo da terra e pensei que estava à beira do abismo, de um ataque de nervos, ou na fonte de um riacho, mudei de lado e por acaso não atravessei a ponte que, no breu, é perigosa por natureza, e sombreia pedras bem fincadas. O chão de terra molhada sumiu debaixo dos meus pés e caí de barriga, chorando, com ódio de mim mesma: eu tinha a mais absoluta certeza de que, se eu não morresse desorientada nessa mata, riria, em menos de vinte e quatro horas, do infortúnio de perder o rumo, qual criança de conto de fada, na floresta alheia, chorando sem lágrimas, grunhindo para as árvores surdas.
Caí num buraco quase do meu tamanho, rasguei a saia, arranhei o braço, lama na bainha, vou expor a saia na Sala dos Milagres. Crianças no dia seguinte chamavam-se umas às outras para ver o buraco onde a glória caíra, qual anjo.
Assim o patético desespero, o luto negro da minha perdição e do meu solitário infortúnio tornaram-se divertimento, e sou a primeira a criar as falas da esquete da carioca que quase se afoga no riachinho, sem norte, sem lanterna, celular, isqueiro ou remédio, agarrada num pão de forma que não larguei nem pra sair do burado à minha altura. Se o dia nunca mais clareasse e se ficasse presa eternamente no buraco negro que nada liberta, se tivesse que morrer do coração ou de cabeçada num barranco para sempre teria entre os dedos crispados um pão, o trigo, o alimento.
Nada era simbólico, nem eu sonhava. Tudo acontecia. Era verdade que eu estava às escuras tateando um terreno irregular pontuado por barrancos, rios, cercas de arame farpado, lama, grama, subidas e descidas aleatórias, chão e céu misturando-se igualmente negros e indiferentes aos meus gritos que somente um cão, talvez do Rio de Janeiro, ouvia e uivava respondendo ao longe. Ele virá, o cão, eu pensava. Ele enxerga no escuro e não veio.
Nem lua, nem raio, relâmpago, lampião, palito de fósforo. Quanto menos lâmpada. Só bunda de vaga-lume inesperada, mais nada nada nada. Em vez de regressar, ainda assim eu seguia, tateando, urrando como filme de terror americano.
Se eu gritasse assim em minha casa com certeza teria à minha disposição em pouco tempo um corpo de bombeiros com sirenes só pra mim, mas na roça só um uivo de cachorro retornava.
Toquei a cerca, mãos frias, tudo era ouvido e tato e, passo a passo, voltei para a estrada, cega e transtornada, transformada. Na manhã seguinte refiz dez vezes o caminho, tonta, tentando identificar qualificando os tropeços e as quedas da minha curta e atormentada jornada.
É a crise que nos transforma, é o amor que nos transmuta. A mãe também é filha e não conheço esta senhora que ora me habita ilesa. Com disciplina aprendo a entrevistá-la todos os dias, e ela nem tem respostas prontas.
Como vou deixá-la agir sozinha, se nasceu dentro de mim uma mulher madura inteira, vinda com contrações de machadadas na dor de cabeça, como quem vem à luz adulta e armada, Atená guerreira que fulmina em nome da paz, escudo em punho, bem polido para refletir Medusas, para espantar medos careteiros de língua de fora que usará como emblema camafeu no peito enquanto alguém tiver receio do encontro.
Trago no meu coração coleções de Medusas assustadas, gréias quase cegas, juventudes degoladas, dois sangues, um cavalo alado voando pra fora da minha cuca e minhocas na cabeça linguaruda.
Sei do amor que petrifica, da circunstância em que fico sem fala, e quando falo o outro não me ouve, segue conversa afora. Estou à mesa, diante de todos, mas minha voz não tem eco, penso que digo mas repito, e alguém finge que não ouve, ou finge que ouve e se distrai em plena frase.
Sei do apaixonar-se pelo homem que só existe verdadeiramente como um reflexo, quase miragem, no fundo do poço, do lago escuro onde quem morre vai em busca de si mesmo, porque a juventude foi perdida levando no bolso nossas referências. Mas não viro pedra, faço flores, narcisos negros, louros, loureiros.
Eco sem voz, quase invisível, cobras e lagartos na boca aberta, áurea e alada, menos aterrorizante que aterrorizada, língua esticada, ninguém me olha. Falar demais e ficar condenada a repetir a última frase do outro dá no mesmo. Em ambos os casos perdemos o curso, o discurso, o contato com o que nem sou eu, não responde, ou é surdo ou morreu.
Cassandra, que tem o dom de prever o futuro e a maldição de não ser levada a sério. Já fui Eco, Narciso, pedra, flor, trigo, Deméter, filha que sai de casa aos pouquinhos, mãe seca, ama seca, já tive peitos de leite, vagina de sangue, raízes no ventre, pólen no vento, semente invisível, mentira indizível, amor impossível, esposa ciumenta que, irada, não perdoa, amaldiçoa, amaldiçoa, amaldiçoa.
Todos nós vimos o séqüito de fãs que contemplaram a princesa, a que sofria de solidão de artista, cercada de longe por pessoas admiradas, que acompanharam de tocaia a trajetória, sem dividir convívios.
Essa categoria de proximidade, o fã, que no afã idealizamos de propósito, para acreditarmos por favor que existe gente bem-resolvida, e se isso é possível eu também quero.
Pessoas que não viram pedras, são estandartes. Se têm a sorte de morrer cedo, são jovens heróis semi-deuses. Caso tenham outra sorte, a de viver muito, se esquecem de pedir aos deuses a juventude eterna e se imortalizam velhas no retrato em livros feito gréias. Quando morrem dão matéria. Cristalizam-se em museus ou até nome de rua. Transformam-se em passeio público, quer pior forma de esquecimento? Quem quer estar engarrafada, quem quer ser contra-mão, sinalizada, ter as luzes apagadas? Prefiro ser esquecida que asfaltada.
Queria descansar, viva. Receber Héstia em minha casa com o fogo aceso, o incenso, a lamparina, a vela, o coração quente, oferecer-lhe um café feito na hora em meu fogão de lenha, emprestar-lhe cobertas de cobrir pés, e sussurrar em seus ouvidos de deusa meus segredos de família:
- Não quero um marido Zeus que tudo em que toca se multiplica. Quero um companheiro da minha idade, com poderes de invisibilidade, que não voe de manhã imberbe, antes que eu lhe veja o rosto magnífico, e o cabelo louro de cachos, zombando de arco e flecha e deixando-se queimar por óleo ardente.
Não quero quem devora os filhos, prioriza o trono, Crono. Narciso no espelho da academia, triste e enfadonho. Do meu inferno quero o dono, o que sempre negocia.
Não quero ser Hera, maldizendo e amaldiçoando amante por amante. Nem quero Hefestos, feio, o dia inteiro trabalhando suado em oficina quente. Maquinando o flagrante, com trauma de penhasco.
Quero estar com Hades, carruagem com tração nas quatro rodas, amante delicado como bagos de romã convidativos feito bilhetinho por baixo da mesa, Senhor de Si e dos Quintos dos Infernos, hospitaleiro.
A poesia é o mundo subterfúgio para onde me dirijo quando o indizível me arrebata e me nomeia Rainha dos Infernos para que eu encare de frente a rotina das estações e do eterno morrer para que algum broto desabroche.
Quero a realidade subterrânea, as estradas de terra que os mapas não registram, e até os bons filmes do cinema, onde o escuro nos transporta para outros mundos com a certeza de que em duas horas as luzes se acendem e levantamos todos, com aquela cara de quem chegou de viagem longa, de quem sai feliz talvez do transe, acorda de súbito depois de sonhos fortíssimos, ou termina de gozar alto feito bicho, volta a si, e acha que tem que falar alguma coisa.
Hoje quero ser querida. Inteira e perseguida. Perséfone, não a raptada brejeira, que grita mamãe tão baixo que quase ninguém ouve, mas a Senhora e Soberana das Trevas Absolutas que, vamos ser sinceros, é onde passamos a maior parte de nossa vida.
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