Finita como flores

23 de ago. de 2009

Marino, seja bem-vindo ao Planeta Terra

Marino, seja bem-vindo ao Planeta Terra. A vida é meio atrapalhada mas a gente curte algumas coisas que fazem com que ela valha a pena. Uma é a arte, a música. Sobre isso, seu pai e seu irmão podem te dar vários toques. Outra coisa muito boa é o bom humor, a alegria e a arte de fazer e achar graça onde a maioria das pessoas (a maioria é chata, infelizmente) não consegue achar. Sua mãe é PHD em risos, sorrisos e gargalhadas. Acho que você deu muita sorte porque a gente não escolhe onde vai nascer. Ofereço-me para ser sua tia. Se você aceitar, está autorizado a me chamar de tia, ou de Góia, que gosto muito, o Julian assim me rebatizou. Não sabia falar Glória, me chamava de Bóia. Maíra era Baía. Como é bilíngue, mistura, dizia que o piano quebroken, que as coisas estavam in dentro, chamava luva de gluvas e um monte de besteiras que divertiam a gente. Adulto se diverte ouvindo criança falar errado, você vai perceber. Meu nome, de baía passou pra Góia e eu gostei.
Ofereço-me também para tomar conta de você. Tomei conta do Julian inúmeras vezes, tenho carta de recomendação da Kris. Deixo criança comer açúcar puro, pão com arroz, ketchup de colher, biscoito na hora do almoço, sorvete na hora do jantar e outras maluquices que você inventar.
Eu era vizinha do teu pai e amiga da tua mãe e os dois se conheceram sem o meu intermédio, mas, concluo, iam acabar se conhecendo de qualquer maneira. Sexta-feira que vem, por exemplo, tem ensaio do Suvaco do Cristo no Baixo Santa do Alto Glória e provavelmente, se você não tivesse acabado de nascer e não estivesse dando o maior trabalho, os dois iam ser convidados e iam se conhecer. Você seria adiado para o ano que vem.
Não leve a vida muito a sério mas tente manter os pés no chão. Dizem que a vida é curta, mas não acredite. Ela é longa pra caramba e está cada dia aumentando ainda mais. A expectativa de vida aumentou para cem anos e não há muito o que fazer. Vá com calma. Não vá ficar chorando só porque a chupeta caiu. Torço pra que você seja um menino bacana como teu pai e tua mãe, que seja feliz, juntando-se a nós, sua família alternativa: Maíra, Julian, Kris, Jorge, Bruno, Teca e outros amigos de seus pais.Tem a família de sangue, a que a gente nasce dela, e tem a família que a gente constrói ao longo da vida. Posso te dar boas referências de seus pais, fique tranquilo, os dois são gente boa e nunca vão atazanar você. Assim que você for liberado pra pegar sol, venha tomar um banho de mangueira na laje, é muito maneiro. A gente vê Niterói, o Museu de Arte Contemporânea, navios, aviões, papagaios, bem-te-vis, cachorros, urubus, minhocas e saguis. Bem, por enquanto você ainda não sabe o que é nada disso, mas com o tempo vai aprendendo. Posso te dar uma força pra você não confundir minhoca com bem-te-vi, etc. É facílimo, não fique assustado. Ninguém confunde, não há de ser você que vai confundir. É só ter paciência. Na vida a gente nunca pára de aprender coisas. Quando a gente pensa que sabe tudo, aí é que danou. As verdades mudam de roupa, e temos que estar sempre correndo atrás.
Bem, cara, é isso aí, espero que você curta tua tia aqui. O Planeta Terra é bacana. Apesar de tudo, vale a pena viver.
Bjks
Góia.


Cheguei no Rio há dois dias. Reencontro minha amiga Glória. Fim de vista ganho seu novo livro. Li entre uma madrugada e outra.
Será que ela sabe que deu voz à mulher na menopausa? Será que percebeu que iniciou um movimento? Será que sacou que vou segui-la? Será que sabe que vai assustar as mulheres na sala dos cabelereiros e spas? Enloquecer os terapeutas? Será?
Comi as letras de dor, graça e ritmo. Deu vontade de chorar mas não tive tempo andando de página em página com muita pressa.
Glória não sai de si e inclui todas as mulheres do mundo. Uma arqueologia do envelhecimento, que descontroi a velhice de cada dia.
É coisa de mulher, com certeza . Mas não de um feminismo facil das “mulheres resolvidas”. Glória não resolveu nada , graças a Deus! Está em carne Viva! Fala do que ninguém quer falar. Não acompanha a moda nem a elegância babaca de uma zona sul que ficou chata e besta. Não quer ser sutil e discreta. Não discrimina nem incrimina a vida pela santa dor de cada dia Amem.
Libertando nosotros aprisionados pela sociedade do espetáculo. Acordou cedo , foi ao cais e desafundou aquele velho navio. Glória, minha capitã da nave louca.
Sua alegria.
Leila Maria Alvarenga Barbosa -Professora de História pela Puc. Mestranda em Social Work na University of Michigan. Ann Arbor




"Perdi a moça que me habitava. Quem conheceu guarde o retrato, quem não viu perdeu a chance" (Glória Horta)

Glória, lendo-te mais do que infinitas vezes

Eu conheci a moça que te habitava. Linda como toda flor o sabe ser mesmo não sendo primavera. Encontrei-a por acaso dentro de um coletivo que vinha de Laranjeiras, você falava alto, declamava versos sorrindo e o ônibus cheio indo não sei bem para onde. Eu que não me habitava naquela altura, estava perdida dentro de mim mesma sem saber aonde ir.
A vida passou e resolvi, depois de encontrar a moça que te habitava, viver, lutar contra tudo e contra todos, contra os preconceitos, não tinha medo de canhões nem de tiros certeiros. A poesia se instalou em mim, veio como praga, veloz como teu riso, tua dramatização, tua emoção. Vesti uma calça colorida e voltei à Favela, ela ainda estava lá enfeitada de bandidos, de casas pobres, de pessoas simples e pensei: é aqui que começo de novo, com novo sorriso nos lábios, flores ao invés de armas empunhada na cintura, poesia ao invés de tiros no escuro, sou eu de novo inteira sem ninguém, entregue à poesia. E acompanhei dali por diante a moça que te habitava, que moça alegre e cheia de poesia, cheia de vida, me trouxe de volta à vida.
Hoje a moça que te habitava continua sorrindo olhando para mim, na cabeceira da minha cama, ando com ela desde então porque tinha medo de perder o que se instalou dentro de mim quando te conheci.
Finita como flores nos trás de volta a mesma Glória de Sangria, sem seus cachos no cabelo é certo, sem a boina preta, mas, com a mesma força de outrora, com o mesmo sorriso estampado no rosto da foto da moça que te habitava e declamava a Amizade Dolorida.
Trago comigo Sangria: entre os livros da eternidade da minha mocidade e quando te leio revejo os teus gestos infinitos, teu jeito menina, mulher, mãe, avó, andarilha, és sempre tão nova, e ao mesmo tempo, tão segura como se todo tempo fosse só isso a tua vida, porque Gloria Horta é assim infinita como o perfume das flores.

Lilia Trajano, poeta carioca perdida em Lisboa. 2010
Mestre em Serviço Social, Educadora de Rua, Assistente Social, e poeta.



PREFÁCIOS


Conhecer Glória Horta foi uma consequência inevitável de Sangria, um de seus livros, publicado nos anos 80. Que fenômeno era aquele que não me deixava desgrudar os olhos das palavras a entornar vida, página após página? Eram palavras com respiração, febres, berros, contrações. Que relação era aquela da autora com o verbo, que se dava de forma tão despudorada, verdadeira e imoralmente bela?
Por sorte, à época, um amigo em comum possibilitou nosso encontro, e eu tratei logo de pegar diretamente com ela dez exemplares de Sangria para presentear algumas pessoas. A reação de encantamento dos meus presenteados com as palavras de Glória foi a mesma, o que não me causou surpresa.
Alguns anos se passaram e eu a perdi de vista. Mas seus textos, suas prosas, seus versos, ficaram entranhados em mim, pedindo mais. E eis que chegam os anos 90, e com ele a internet, que tornou muito mais fácil a minha busca por Glória Horta (obrigada, internet, por me permitir reencontrá-la). A partir de então, pude estabelecer uma relação mais estreita não só com a autora, mas também com a autora da autora, ou seja, com a ‘pessoa’. Ambas se confundiam. Para minha felicidade, nos tornamos boas amigas explorando as possibilidades virtuais.

Não consigo imaginar Glória dissociada das palavras, fazendo outra coisa que não seja escrever, escrever e escrever. É como se essa mulher, escritora, vivente e sobrevivente, tivesse vindo ao mundo com a missão exclusiva de traduzir os espasmos da existência em prosa e verso, dançando nua pelas palavras como quem liberta a si e aos pobres mortais dos próprios limites.
Hoje, modestamente, ela dá ao seu mais novo livro o título “Finita como flores”. Como se Glória Horta tivesse algo a ver com finitudes. Tudo nela é infinito, de eternos recomeços, vendavais e calmarias. Mas as palavras jorram como água de fonte sem que eu lhes conceda um sentido, diz a autora no texto que dá nome à obra. Ao que eu complementaria: as palavras dela jorram aos cinco sentidos de quem bebe dessa fonte, ainda que não lhes seja concedido um sentido.
Nas letras e na vida, Glória Horta me ensinou a aprender o humano, demasiadamente humano.

Marcia Cardoso
Tradutora, revisora e eterna leitora de Glória Horta
Abril 2010

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